terça-feira, 31 de agosto de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Thaumatrope
Alexandre Sarrazola
Averno, 2007







peixe-aranha: patti smith: radio ethiopia

tenho as margaridas do teu vestido de verão; azuis e amarelas
o pêlo de raposa pelos ombros e o chapéu de lã não me enganam
a chuva oblíqua a fugir do outro texto; do texto do outro
"não entres nesse quarto"; a porta sempre fechada.

éramos secos de carnes e tínhamos cortado as mãos.
de rimbaud já só aquela faixa de sombra sobre o lado direito do rosto
a ampola de cloreto etílico pousada no chão de losangos pretos e brancos
o éter aspirado num lenço que se volatilizou como uma ave maligna
"é para a picada de peixe-aranha".

a banheira de esmalte estalada no rebordo
a água fria; os teus gatos que acordavam
o teu vestido de margaridas pousado num banco da casa de banho
e o efeito da ampola como um relampejo letal

a polaroid desse dia já começou a desvanecer-se
e não afoguei ainda a imagem do silêncio
virá comigo com os gestos por fazer
para o fundo do poço de mercúrio

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Passatempo fechado

Caros etéreos,
fechou o passatempo para os 4 motes propostos, pelo que não serão aceites mais participações.
Serão publicados aqui, brevemente, os primeiros 26 poemas que chegaram à nossa caixa de e-mail.

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Instantes, Permanência

Agripina Costa Marques
Pedra Formosa, 1993







Possa a noite ainda ampliar o espaço
em nítida passagem inteligível através
dos signos que em si se disseminam.
Quedar em vigilância face à escrita cifrada
que contêm. Descer na noite ao poço
pleno em que se fundam. Nada se perca.
Tudo conduz à luz onde a voz se enriquece
quanto o olhar atento. Que aberto permaneça.
Recto. Da escuridão ao rigoroso alvor.
Iluminação que alargada seja. Desvelada.
Na noite imensa resplandecem luzeiros.
Seja no claro dia imenso e alto o voo.

domingo, 29 de agosto de 2010

Mote "Sul"

Fechou, neste momento, o passatempo com o mote "Sul", uma vez que já recebemos os 6 poemas concorrentes.

(Ainda continua aberto o passatempo com o mote "Lisboa".)

Mote "Pão"

Fechou, neste momento, o passatempo com o mote "Pão", uma vez que já recebemos os 5 poemas concorrentes.

Mote "Escrita"

Fechou, neste momento, o passatempo com o mote "Escrita", uma vez que já recebemos os 7 poemas concorrentes.

Venham daí esses poemas!

Caros etéreos,
desta vez proponho-vos um passatempo múltiplo, em que serão oferecidos 26 livros de vários autores:
• 7 exemplares do livro "Área Afectada" de Fernando Esteves Pinto (oferta da editora Temas Originais): aos primeiros 7 participantes que enviarem poemas com o mote "Escrita".
• 8 exemplares do livro "Espelho Íntimo" de Torquato da Luz (oferta do autor): aos primeiros 8 participantes que enviarem poemas com o mote "Lisboa".
• 6 exemplares da revista de poesia "Sulscrito" n.º3 (oferta da editora 4Águas): aos primeiros 6 participantes que enviarem poemas com o mote "Sul".
• 5 exemplares do livro "Este pão que nos come!" de Raul Veríssimo (oferta da editora POPSul): aos primeiros 5 participantes que enviarem poemas com o mote "Pão".

Só serão aceites as primeiras participações que totalizem os 26 poemas para os 4 motes propostos. Cada participante pode enviar apenas um poema para cada mote (podendo, portanto enviar 4 poemas).
Só serão aqui publicados esses 26 poemas.
Não se esqueçam de enviar as vossas moradas (para posterior envio dos livros), mesmo que já tenham participado noutros passatempos.
O prazo de recepção dos poemas termina às 24H00 do próximo dia 5 de Setembro.
Os poemas deverão ser enviados para o e-mail: porosidade.eterea@gmail.com e deverão indicar o mote escolhido.

Boa inspiração!

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


A Realidade Inteira
Ángel Crespo
Selecção e Tradução de José Bento; Prefácio de E. M. de Melo e Castro
Teorema, 1995






As coisas

Pelos caminhos encontramos bois.
Vamos contando testas de animais cornudos.
Nos caminhos encontramos árvores.
Vamos contando ramos de altos vegetais.
Vamos pelos caminhos e contamos ervas.
Mas os bois também contam presenças de homens.
E as árvores contam robustos braços de homem.
E as ervas contam as nossas pestanas.

Todas as coisas têm
olhos para fitar-nos,
língua para falar-nos,
dentes para morder-nos.
Vamos andando como se ninguém nos visse,
mas as coisas estão a fitar-nos.

sábado, 28 de agosto de 2010

Os vossos poemas

Caros etéreos,
chegaram, até hoje, ao porosidade etérea, 50 poemas para participação no último passatempo, desta vez de tema livre. Devido ao número elevado de participações, este passatempo encerra hoje, pelo que não serão aceites mais poemas.
Como sabem, os primeiros 10 participantes receberão um exemplar do livro AvRYl de Dinis H. G. Nunes.
Assim sendo, receberão o livro, pela seguinte ordem:
1. Raquel Patriarca (Matosinhos)
2. Fernando Machado Silva (Portimão)
3. Mário Rui Filipe (Lavradio)
4. Andreia Silva (Vila Nova de Famalicão)
5. Soraia Martins (Aveiro)
6. Julião Bernardes (Queluz)
7. Francisco Coimbra (Ponta Delgada)
8. João Rasteiro (Coimbra)
9. @lexis (Amadora)
10. Vicente Ferreira da Silva (Porto)

Eis todos os poemas, pela ordem que chegaram:



Eu, Inquisidor

Que faço quando tudo arde?

Eu,
Inquisidor,
única esperança
de remissão,
ardo nas chamas da salvação divina.

Eu,
Inquisidor,
convoco o homem
o herege pertinaz,

posto a tormento no suplício
vê nascer a verdadeira fé
em cima do potro ou nas cordas do polé

essa criança que ofende
o Pai
reacende as brasas do amor celeste

Eu,
Inquisidor,
nada vejo:
nem sonhos,
nem palavras,
nem a carne rosácea que perante mim se disforma

vejo a alma
o pecado e o vício
é este o meu santo ofício.

Eu,
Inquisidor,
queimo as palavras, os sonhos,
a carne cinzenta que perante mim se reforma

e, quando tudo arde,
sou eu sublime
sou eu santidade.

Raquel Patriarca (Matosinhos)
http://blankbluebook.blogspot.com

***

ocaso egoísta

prevê-se a tempestade, sob o teu olhar,
o horizonte escurece, o lápis
delineia o risco, tímido, o dia
vai caindo. atravessamos esta ruína
de ponte, ao fundo as poucas dunas
de árida vegetação, cardos
estornos, narcisos, cordeirinhos.
escolhemos a margem sossegada
da ria, longe dos viveiros,
esparso cemitério, vivo verso
de camilo pessanha.
por pouco seríamos índios da meia-praia,
pés descalços pelo lodo, perseguindo,
cada um pelo seu lado,
o cão, esta espécie de filho, louco
infatigável nas aventuras
predadoras, sem consequências,
nenhuma gaivota ou garça
se deixa apanhar por quatro patas.
pode vir a tempestade, a tormenta,
o fim do mundo, tudo isso
pouco interessa. a felicidade
é egoísta.

Fernando Machado Silva (Portimão)
http://donnemoimachance.blogspot.com

***

Chamas da Memória

E agora, que tudo começou? Em que faldas me remeto para a convulsão dos sentidos!
Sinto a pele a queimar e a estiolar-se nas cinzas dos exegetas do silêncio. Sofro na
mais nebulosa inexactidão dos olhares e dos cânticos ao luar. A labareda insone
percorre o meu limbo prenhe de lágrimas na raiva em que me encontras. Dás-me
a mão e percorremos o sopé da serra em demanda pela paz. Tal como aqueles
soldados, extenuados e inalando horas de mãos criminosas. Um horror de ser
humano, para abafar o sentimento do amor pelo mais verde pulmão que abraço.

E por fim, que palavras tenho para te dizer? A minha vergonha esconde toda a
erudição das palavras inauditas que apenas consigo sussurar. Há um sopro de vida
que ainda resta em ti, voa em direcção às estrelas e chama as nuvens para o mais
solene extinguir de fogos-fátuos da memória. O dia em que o teu sorriso abriu as
portas da capela mais isolada da Serra. Lá, depois de nacaradas as flores mais
silvestres, aprendeste a medir a altitude em que te encontras. Desces, sem pressa,
depois da tormenta inflamável que vivemos e abraças um canto dulcíssimo no meu olhar.

Mário Rui Filipe (Lavradio)
http://www.mariapernilla.blogspot.com

***

Desencontros

Quero tanto, mas tanto, não te encontrar
Quando ando pelas ruas que conheces
Não quero ver a ternura no teu olhar
Preciso sentir, em mim, que me esqueces

Ncessitamos de manter distância
Mesmo em todos os cantos da cidade
Não podemos ter, espera com ânsia
Não se esbarra com a felicidade

Mas no fundo, bem lá no fundo do sentir
Ando com passo normal sem ser a fugir
Caso eu te encontre num cruzamento

Nunca se sabe o que o destino faz
Nem se prevê de que o olhar é capaz
Quando não acabou o sentimento

Andreia Silva (Vila Nova de Famalicão)
http://segredos_escondidos.blogs.sapo.pt

***

foge-me o chão

«por tudo
abandona-me aqui
somente a terra me comerá os pés
o cansaço que derramo
será sorvido por um leito
que me aguarda
despido
quente

pudesse eu cheirar o que pensas
e tragar cada palavra
malícia de letras bem-vindas
num sopro que só o meu olhar
cuida
o amor já não se deixa abater assim
foram tempos
em que esquecer dava jeito
e fugir era bem feito
e mexer nas coisas significava
querer mesmo saber
o intuito

a essência
era comer as mãos com que se pecava
neste silêncio que não nos deixa dormir,
grita-me aos ouvidos
treme-me os lábios
pequenos bichos-do-mato
passeando-se no ruído
deste peito convalescente
um eterno volver
no cabelo que cheira a pêssego
e que de um travo
bebo
fio a fio
prendendo-me o esófago afrontado
fio a fio, por entre fios

a cor do mel
arde nos braços»

Soraia Martins (Aveiro)

***

Não tem olhos mas vejo
sem disfarce nem dúvidas
o meu interior
– deixa-me nu e só
na tranquilidade
de uma ferida seca.

Dissimula-se por dentro
como quem obtém prazer
jogando às escondidas
no desejo de vencer-nos,
com sede de ser descoberta:
matéria primordial, definitiva
por onde se afirma o percurso
de cada um de nós,
invisível, fria escuridão
que nos acende o corpo
a despertar na morte.

Julião Bernardes (Queluz)

***



como é belo
e difícil
conhecer-te

que nem sei
como dizê-lo
sem escrever

isto aplica-se
ao próprio
mundo

e temos
de o fazer
todos os dias

passar
do olhar à
própria coisa

mergulhar
na essência
do olhar

Francisco Coimbra (Ponta Delgada)

***

Poema Verde
Ao Albano Martins

I
Nada já há a pronunciar em tua defesa
sob o viço das oliveiras. Enterra o teu segredo
num verbo apócrifo e gentio.
Oculta-o de perfil por entre a língua
que nunca possuíste na boca. Agasalha-o inteiro
até clarear o musgo na fissura do chão.
Preserva-o como se só a voz queime intacta
o sulco de uma lua de enxofre.

Ó ser,
cujas alegorias foram as sombras aprazíveis
do ígneo clarão. Como é verde a raiz duma planta
que secou, o mecanismo afectuoso da barbárie
e o curso trémulo do peregrino.
Entre o odor da terra e o calor difuso do coração,
a chuva ancorada sobre a flor de lótus
equilibrando-se corpo virado para as fogueiras
da água que pugna a seiva.

II
Há-de o tempo perpetuar aquela farsa arquitectónica
de um poema perfeito. Pois ermas estão as águas,
a divina força de sua granítica soberania
em nossas condenadas elegias.
Parece um lugar para amar no escuro, o indistinto
e primordial eco do anjo no Inverno?

Tu, poeta,
que deslindaste perplexo que há lodo sob as algas,
sob a pele, como uma vã condenação.
Na verdura da sílaba, em ti, qualquer crença nua
no oficio de romeiro, íntima
na sede mais forte dos líquidos, no pranto do sol,
poderá subsistir ao ensejo dos aguaceiros.
Tu, que não perduras no cântico mágico do poema,
mas tão só ciciado nas múltiplas máscaras
do tempo anterior ao acasalamento dos besouros.

III
Em cada árvore depois do fogo, o poema
regressa nu e a morte verde, a lágrima
corre como se uma enxurrada tolhesse as palavras
em homem e bicho, em água e sangue, em eco e cântico,
em borboleta e mariposa. Para sepultar os prados.
Falo do inexplicável sopro. Aí, tudo permanece.
E tudo é teu. Tu és o sangue, o verão e a pedra sagrada.
O poema é verde. Sinto-lhe o odor materno.

João Rasteiro (Coimbra)
www.nocentrodoarco.blogspot.com

***

Relógio

Eu sou o ponteiro dos minutos
No relógio da minha existência
Passo pelo ponteiro das horas
Em momentos certos e mágicos

Quem passa pelo relógio
Que julgo vagamente ser eu
Segue depressa demais
Sem olhar a quem adianta

Talvez o ponteiro dos segundos
Trespassando os números
Fazendo constantes tangentes
Na vida assim como na morte

Seria talvez bom poder
Girar os meus ponteiros
Sempre no sentido certo
Num ritmo próprio de mim

Parar em minutos preciosos
Saltar segundos amargos
Impedir o toque da hora
Fingir que ela não passa

Parar o tempo ali mesmo
Naquele minuto de silêncio
Em que tudo se diz sem falar
Numa cúmplice troca de olhares

Acelerar o seu compasso
Quando o leito vazio chama
Supor uma noite numa hora
Na ilusão de tudo transformar

Julgar tudo um sonho cruel
Quando ao despertar
Tudo permanece igual
Até as horas no relógio...

@lexis (Amadora)
http://somesmopalavras.blogspot.com

***

Infâncias

ir além é uma necessidade imanente à condição de existir.
desde o instante em que os olhos recém-nascidos se entregam às lágrimas,
o ímpeto de conhecer o mundo impele-nos a seguir,
amparados no que nos foi anterior e nos fez.
mas ninguém olha para o horizonte à procura do antigo.
e todos os dias o portal acontece quando o Sol mergulha nas águas,
fundindo ondas laranjas nas paredes do átrio triangular da quimera.

todos sonham com a sabedoria do tempo vindouro
– esmorecendo o sabor do momento presente
e desperdiçando a energia que será necessária ao percurso a fazer –
pelo delírio na capacidade profética da alegoria ocasional.
foi na ossada da fera que o favo de mel se resguardou.
incólume! mas assim aconteceu por determinação externa.
já o discurso ecoa prazenteiro porque é dito para agradar.

reflexo duma atitude implacavelmente determinada,
este correr faz-se sem ponderação rítmica
na busca dum oráculo indiscriminadamente vaticinado.
e o mergulho que aumenta a velocidade tombada
escoa a amplitude da perspectiva num breve ponto afunilado,
que transfigura a beleza da paisagem num vórtice intemporal,
onde se encontram os algodões doces mais sumptuosos.

ah! perante a omnipresença da execução mímica,
a ilusão é uma candura em si mesma
estranhamente ligada à falta de açúcar.
eis a pertinácia pelos carrosséis!
os adultos regressam ao mel da infância,
reforçando os tendões da mão que cria redemoinhos antagónicos,
ao alcance do anseio na chávena de café arrefecido.
e não antevêem a cegueira, nem a redundante contumácia.

o tempo não recua se os movimentos forem contrários aos ponteiros.
contudo, todos os dias, na esperança da entrega, o portal acontece.

Vicente Ferreira da Silva (Porto)
http://inatingivel.wordpress.com

***

AMOR QUE É MEU

A ti agora eu confesso meu amigo
tens em teu poder algo que é meu
um eterno e esquivo amor antigo
que ao meu amor não respondeu

o meu grande amor vive contigo
tu conquistaste-o e agora sou eu
que sem amor na vida vivo e sigo
na saudade desse amor, agora teu

perdi esse amor que me faz falta
sem ele sou apenas um solitário
cuja alma, por amor, não exalta

ganhaste tu um amor para a vida
porque foste bem mais temerário
de mim a coragem andou fugida

Emanuel Lomelino (Camarate)
http://amadordoverso.blogspot.com

***

TROVA DO MEU CORPO

Para ti
A minha cor púrpura da vida,
deleite de te ter longínquo ou não, o teu toque

De ti
O raiar das estranhas noites onde as sílabas que os meus lábios desenham,
rubram no espelho o vácuo da tua imagem

Para ti
Os meus seios de camélias amarelas, e a trova do meu corpo nu

De ti
Rasgo de vontade que te conheço,
de segurar os meus cabelos
e arrastá-los até onde o meu rosto se possa deitar

Para ti
A génese do amor mais profeta,
na linguagem libertina do desejo
e da entrega do teu olhar vencido

De ti
Os afectos obscenos que ondeiam a minha libido
e o teu sorriso narcísico de perdão,
quando me lanças na culpa,
fazendo de mim pérfida mas sempre amante

Para ti
Não cesso o sonho de alarmos o cosmos de mãos dadas

De ti
A rendição, sem condição,
para que te sorva no ímpeto da madrugada
desvirginando o meu ventre

Para ti
O estremecer das palavras
que as nossas bocas emudecem!

Ausenda Hilário (Faro)
http://poemas76.blogs.sapo.pt

***

Não se força um verso
nem um passo
na calçada húmida
nem um beijo
no impulso do desejo
que dois corações sedentos
anseiam
sem nada pedirem
calados.

Amando-se em silêncio
perdidamente apaixonados
ao prazer solitário
abandonados
de cada alma
que se quer fundir
na outra
num espasmo cósmico

Fernando de Jesus Ferreira (Queluz)

***

Cleópatra Dançarina

Só, vejo-me ante a página branca:
A mão engelhada, inerte e exangue
Da tinta vermelha e do negro sangue
Que o noctívago solilóquio estanca.
As luzes das estrelas são sudários
Encobrindo-me as palavras – crisálidas
Manifestações lívidas e pálidas
De débeis e abortados poemários.
Mas ei-la: aparição na brancura,
P’la noite adentro e p’la noite afora,
Almiscarando a alvorada madura...
Descubro-a na veste alva que a esconde
(Trémula doce arauta da aurora),
Amante milenar de um país onde

Das lúbricas areias se erigia
A dissoluta Rainha Cleópatra
Que bebeu o sangue dos faraós,
Dos deuses favorita fantasia...
Tresloucada, viajava pelo Nilo,
Como fosse montada num trenó
Feito de luzes e raios de sol,
Buscando marcoantoniano asilo.
Mas em vão: os musculados e fortes
Braços do romano gladiador
Estavam agrilhoados pela Morte...
Nunca mais veria o seu amor,
O Destino levara-lhe o consorte...
Só restava-lhe um deserto de dor...

Foi assim que a Bela Egípcia virou
As costas ao mundo e à própria vida
E que, numa velha língua esquecida,
Aos deuses e aos homens renunciou,
Pondo-se a caminho do sol poente.
Nos meus versos, as mal acentuadas
Sílabas tónicas são as pegadas
Que os seus pés deixaram na areia quente.
Se eu fechar as pálpebras, ouço e espreito
O sussurrar das folhas no desértico
Coração do poema cujo peito
Atravesso para me alimentar
Do leite de Cleópatra, profético
Vislumbre do seu berço tumular.

E quando ela alcança o topo dos céus,
Vira-se para baixo, de olhar líquido,
Serpenteante foz do fluir nílico,
Deusa que reúne crentes e incréus;
Todo o Cosmos ao Egipto se junta
Como para ver um prodígio bíblico
Que obedece a regras do tempo cíclico
Materializado na bela defunta.
E quem não lhe percorre as esguias
Pernas (que parecem auto-estradas
Onde caravanas de emoções, dias
Após dias, seriam transportadas)
Ainda que, de mortas, sejam frias?
E as unhas quando na carne cravadas

Sabem ao toque dos escorpiões...
Os seus cabelos, longos e escorridos,
São negro chocolate derretido
Por lume sustentado por paixões...
Com o corpo projectado nas dunas,
Onde o vento quente os seios lhe beija,
Perfila-se quem o mundo deseja,
Tatuada de hieróglifos e runas:
A inventora de todos os sentidos,
Sob a pele cor de aroma de café,
Acena-me de dedos estendidos
Do alto da Grande Pirâmide de Gizé,
Masturbando-me em lentos passos de ballet...

Alexandre Homem Dual (Faro)
http://amendual.blogspot.com

***

Poema livre

Havia, há muito, muito tempo,
No tempo em que as fábulas ensinavam,
E as cigarras eram apenas preguiçosas
E não artistas,
Até porque os poetas que as condenavam com elas não se identificavam,
Havia,
Dizia,
Uma poesia que não era livre.
Pobre, coitada, presa, a ritmos agrilhoada
A sílabas longas e curtas,
A rimas cruzadas, emparelhadas...
E eram odes e sonetos,
E rimas terças em italiano ou toscano antigo.
Havia, nesses dias, um só poema que,
Antes do fantasma do poeta maldito, era dito,
Bendito e cantado num só grito (que fôlego, que fôlego...) por aedos,
Cegos, no seu posto, palco, quedos,
E elevado nos seus falsos credos a religião.
Que, já nessa altura, eram os poetas fingidores.
Falsos, mentirosos, mas simpáticos, subservientes com quem os alimentava.
Havia mecenas pasteleiros, cozinheiros, padeiros,
E paneleiros, de grandes panelas, cheias de pitéus,
Que abriam os céus da fartura aos famélicos profetas
Da semente das palavras.
Hoje, os poetas morrem à fome.
Hoje, os poetas morrem. À fome.
Há fome nos versos dos poetas.
Os pasteleiros, cozinheiros e padeiros
Não dão pão a malucos...
E se algum dos paneleiros se atreve a armar aos cucos
Sendo mecenas,
É por amor, por tesão, por coração,
Não interessa. Não faz regra.
Amará o poeta, Não a criação.
E amando-a, tanto podia ser paneleiro, como não.
Até porque a poesia já não é sáfica nem seráfica
Nem épica nem profética
Nem lírica nem empírica
Nem redondo cagalhão.
Hoje, já não há rimas nem forma,
Nem pontuação. Nada guia a locução.
Hoje, a poesia é livre.
Os estômagos calaram-se, mortos, e a eloquência do espírito,
Faminto,
Floresceu em poemas
Sem rima
Sem forma
Sem métrica
Nados de uma besta tétrica
Ai, uma rima,
Que julga criar, em prima e dolce preguiça,
O fulgor de um novo stil
Disfarçado de poética
Morta, cosmética, senil.
Mas não patética.
Pateta, sim. Indigesta. E vil.
Como esta.

Manuel Anastácio (Guimarães)
http://literaturas.blogs.sapo.pt

***

escrevo sobre as mãos
que prometem o primeiro dia dos frutos
e casulos de horas afiadas

vejo-as engolir a chuva do que dizes

seguro nos dedos
a tua asa mais cansada

as mulheres saem à rua
no primeiro crepúsculo do mês
e entregam as suas feridas ao rio

outras paisagens singulares
feitas de mãos e ossos
e feras nocturnas mordem-te
por dentro

aguardas que o relógio pare

memorizas a hora exacta
em que anoitece no teu corpo

o tempo morde agora
as quentes arestas
das fotografias

deflagra no coração delas
um incêndio cíclico
como se a morte
se tivesse alastrado também
à memória

sinto recomeçar em ti
a inevitável metamorfose
do mundo

sobrevivemos durante décadas
com as mãos frias, dizias

penso em ti como quem mergulha no mar

uma vertigem nocturna
soletra as horas
e propaga-se agora pelas ruas
um medo absolutamente nefasto
de morrer sem que ninguém me impeça

sei agora
que algures a caminho de ti
abandonei o meu próprio corpo

João Paulo Coelho (Évora)

***

AMOR E FUGA EM AUSCHWITZ

Um amor numa esquina furtiva
de arame farpado, um delírio
que liga o amor apenas trocado
entre as mãos e os olhos
no rumo da noite, no bosque do céu
ramos de estrelas
cobrirão nosso rasto.

João Tomaz Parreira (Aveiro)
http:// www.poetasalutor.blogspot.com

***

AINDA

O helicóptero rasga a noite
com o seu som de guerra
e passa na janela, iluminado.
Os mortos despertaram
e vestem camuflados,
os mesmos que traziam, cheios
de gritos e de sangue.
Falta o escarrar das armas
e as lágrimas das mães,
enquanto na cidade alguém não dorme,
à espera de vingança. São
os que sobreviveram, loucos,
e existem como mortos em combate.

Nuno Dempster (Viseu)
http://esquerda-da-virgula.blogspot.com

***

Seguia as luzes ao passar

Seguia as luzes ao passar
chutava pedras e rodava sobre si
os braços que erguia no ar
como mastros inacessíveis.
As margens extenuavam o silêncio,
as águas gélidas e douradas
do rio resplandeciam.
Havia a pureza inicial das fontes,
o deslizar das sombras
e o mistério dos deuses ao passar.

José M. Silva (Santa Maria da Feira)
http://esquicospoeticos-avlisjota.blogspot.com

***

a revolução dos cravos era exótica por proceder à toma de imagens em reportagens de Adelino Gomes. Exorcizava quadrantes da sociedade até então escondidos na mente de Cunhal e presos em Peniche como os desenhos. Dos penedos que via da prisão até ao mar como dos tanques rolando nos paralelipípedos do Carmo lhe chegavam odores maciços das flores espezinhadas no chão.

Paulo Lima (Lisboa)

***

O Tempo, como medidor de existências

O Tempo: que dúbio e errático conceito!
O Tempo: dúvida e procura; busca e desencontro.
O Tempo que eu perco a defini-lo,
Esse, sim, é o tempo inútil.

O demais é o que me resta,
Simplesmente o que me resta,
Para contemplar-te…

Emílio Miranda

***

o poema carrega na voz de dentro
o devir das mãos ainda ausentes
como se não houvesse [nem pudesse
haver] uma extensão máxima entre
o corpo e o mundo

o poema surge na voz de dentro
num ritmo sigiloso de deuses cinestésicos
olhando, admirando, mas sentindo
medo que o corpo se quebre
no olhar das mãos

o poema foge da voz de dentro
dizendo à palavra que se afaste
e abrindo o corpo ao mundo,
numa ânsia frenética de
ritmos e silêncios

[animais rondando o génito
sagrado].

Jorge Vicente (Mem Martins)
http://jorgevicente.blogspot.com

***

SOVACO DE COBRA

o sovaco da cobra resguarda o saco dos segredos
à mistura com a mentira dos medos: guarda o que pode
e o que sobra sacode juntamente com os dedos.
é preciso dizer que a cobra engorda aos solavancos
da ira desfeita (olá cobra imprudente -
que como o ponche se ajeita) e à espreita
espoja-se no pó da terra branca. plasma-a a luz
que na acácia se espanta.

mas os segredos – meu deus quantos enredos
se burilam no canto do lobo e eu fico
pasmado como os rochedos resistem à dor
do mar. e eu fico especado perante a tarde
que se deixa cobrar. só a cobra engrena
os desvelos de ficar por aqui preso
pelos cabelos e ser a vontade guardada
na calma tempestade da achada.

salva-me o sovaco: o suor e a canseira
de ser outra ilha de outra maneira.
de ser barco ou ser vento ou ainda avião
numa viagem carpida por dentro. ou não

ou sim. ou talvez assim

Nuno Rebocho (Cidade da Praia, Cabo Verde)

***

Amores de Infância

Mal-me-quer, Bem-me-quer, Mal-me-quer!
Esta não valeu escapou-me uma pétala,
desta vez começo por bem-me-quer.
Bem-me-quer, Mal-me-quer, Bem-me-quer!
Tenho de ter a certeza que ela gosta de mim,
mais uma vez.
Bem-me-quer, mal,bem,mal,bem, Mal-me-quer!
A primeira não contou, melhor de três,
Bem-me-quer, mal,bem, Mal-ups caiu,
deixa cá ver, qual vou escolher:
este está murcho, este é complicado é muito florido,
este pelos bichos foi carcomido.

Um malmequer perfeito,
tenho que encontrar,
mais formoso que um Serafim,.
Um malmequer que faça jus à beleza
da minha princesa.

Cada pétala é uma cega lança
No seu desfolhar reside a esperança,
do meu sonho não ser desfeito:
de vir a ser o príncipe encantado
desse ser alado.

Bem-me-quer, mal-me-quer, Bem-me-quer!

Como diferente eu seria
se o meu infantil frondoso caminho
fosse feito sozinho
sem a companhia
da minha donzela
e o justo malmequer
para o seu amor testar.

Carlos Oliveira (Seixal)

***

ESTRELAS

Gosto muito mais
De olhar as estrelas
que de assinar uma sentença de morte
Velemir Khlebnikov


Gosto muito mais
de olhar as estrelas

o meu olhar bem sabe
onde se quer perder

na pontinha do céu, no lustro dos astros
que de assinar uma sentença de morte

a minha mão bem sabe
o que escolheu,
com que lustrar
e pontilhar a folha branca

se estou só, se o ódio
acomete com a sua asa de pedra
não cedo

que murmure
que impetre a ofídia morte
ao meu semelhante

viro-lhe as costas
da mão e da face

a mão não pode escrever outra coisa
senão o que os olhos vêem
é assim que é

como poderia suportar a perda
de uma das estrelas
do meu firmamento?

de uma só, por mais fosca que seja
a sua luz
vê-la cadente seria matá-la

e isso eu não faço!

Rui Miguel Duarte (Herserange, França)

***

Sou o que sou

Sou o que sou:
vagueio na luz intermitente
de uma descoberta.
Sou a voz emotiva
das palavras.
Letra a letra, já não sei
soletrar-te.
Um dia – agora – sei que
encontraremos a resposta.
As dúvidas dirão de nós
tudo aquilo que nos afastou.
Falaremos de amor
e de magia."

Paula Raposo (Estoril)
http://romasdapaula.blogspot.com

***

A Noite do Rio das Cores

O recorte desta transparência deixa-se tocar: agora que te levou obliterando o sorriso solto pela portada vermelha, que em cascata insistia abraçá-lo: ao rio que te encontrou e não te traz.

Espelha a serra depois de declinar o movimento irrepetível: não o omite: não esqueço a noite.

A calçada ilumina-se ao adivinhar teus passos: mordidos de forma ténue por bocas insubmissas à voracidade do silêncio.
Nem ai surge a ousadia de o interromper: não é o rio que todos julgam ver.
As correntes que lhe sulcam o percurso, parecem torcer-lhe a génese: muito poucos: num só: afloram a percepção do que verdadeiramente significam as convulsões que o esmagam: do mesmo modo que o regeneram.

Porque me entrego à força que me engole e não expludo os braços: os meus e os dele?
Rio das cores?
- Rio das canções: as que se escutam quando impera o silêncio.
Rio que desce?
- Rio que cresce!
Aprende, quando consome quem por ele é tocado.
Rio das cores?
- De todas: do verde: límpido lento: vertiginoso barrento.
Rio negro onde mergulha o manto branco.
Rio alvo que dança incluído nas canções que não se conseguem desenhar.

Relembro a fotografia enrugada pelas marcas do tempo e da acção dos demónios que a sonhavam perdida: o que ele agregava na sua descida quando imaginavam divisão: o que aproximava o que julgavam perdido!

Respira branco; move-se único: serpenteia de alma negra: pescadores de almas de dedos marcados pelos cortes explodem no coro que o enaltece: o cântico lânguido pela espera de quem não volta: branco: o canto que abandona os peitos em chamas e que escuto ao percorrer o relevo desta imagem com os olhos agora cerrados na recusa mais legítima: porque tens os montes iluminados nas tuas costas?
O que celebras?

Caminho para ti só para tocar o que definiste como o teu limite: o esbater do brilho que afinal nunca possuí: aquele que restituíste.

Estas margens nascem quando respiras na passagem em ciclos: voltas quando te supunham sem regresso: a doce dança da saudade: branca: dilacerante negra: caleidoscópio a preto-e-branco: para quê o superlativo das cores bastardas?

Como tantos mergulham e não vêm o que se move nesse fundo tão alcançável?
Para quê tantos artefactos, se não necessitar de respirar é o todo: branco: e desejar que seja perene o nada negro: círculo em arco do espectro solar genuíno: branco na imensidão: negro no que cobre: a canção não afaga como o negro Sol: a inatingível sobreposição da cor que é única.

Os raios ecoam agora: quem por eles será atingido: quem os procurará?
Continuas a olhar para mim?
Vens escutar as canções que te atiro?
O que espalhas sobre mim, desse teu encantamento?

Esculpi estes jardins para que os banhasses no teu movimento: suspendo-os depois para que os busques: iças a vastidão dessa massa branca para que roube, simbiótica, o negro?

Há sereias que largam os mares para em ti florirem: querem beber desse negro: dormir sobre esse branco: como se reflectem nesses espelhos que inventam a simetria das cores: a dança das quantidades discretas: o domínio da matéria e da luz inventado para os Deuses, que repletos pela sabedoria concedida: não sabem como usar as mãos agora desfeitas: membranas de sangue: negro no vento: branco no galope: “branconegro” no mergulho para a conseguir aflorar.

Afinal esses seres são descendentes de luz: encantadas pelo som: com trocas desejadas.
Por todos passas rio: nesta noite branca que convoca a noite negra para a pugna das cores que se abraçam.
Os pássaros que se beijam sentirão que o voo suspenso os leva aos mais distantes e escondidos destinos da migração das cores?
O silêncio subdivide-se na dimensão da criação dos processos naturais: porque sorriem nessa dor quente?
A pergunta desiste: porque trocaram os mares?

Outra nação se alcança na tua travessia: todas as outras por ti são alcançadas e recolhem as suas bandeiras: as torres choram agora, brancas sobre as pedras negras.

O fogo branco invade agora o céu negro: nunca a magnitude das cores universais esteve tão perto de gerar os passos cósmicos com que de mim te aproximas: como a ti estou tão entregue: apenas me vejo em ti na mais imponente das escalas atómicas: negro simples: branco inteiro: a ocupação do espaço pelo objecto da tua dança nem se escuta: estes braços já não são meus.

Nuno Fonseca
http://omarsuperior.blogspot.com

***

Gosto de ler poemas

Gosto de ler poemas
Na rua em pé e nu
Como sempre estamos quando lemos poemas
Aos outros
Se bem que há poemas que nos vestem

Gosto de ler poemas
Com folhas escritas à mão
Como antigamente, lembram-se
Tirados de livros impressos em papel
Lembram-se
Mas nunca tive coragem de o fazer
Sem as roupas do Inverno
Que por vezes habitam a fronteira do poema

Gosto de ler poemas
Fechado e preso numa torre de masmorras continuas
Subindo e descendo
Entre caves vinhateiras
E varandas para o Tejo
Ou o Ganjes

Gosto de ler poemas
Desolados e tão negros
Que envergonham o caos e a desordem
Dos vagabundos
Imaginem uma cidade onde todos são homeless
E apenas poucos habitariam algumas casas
Envergonhadamente
Imaginem Lisboa ou Porto
Londres ou Tulsa
Em que todos os homens e mulheres
Abandonariam as suas casas
E viveriam no olho da rua como se diz
Juntos e aquecidos
Para se sentirem humanos
Interessante pensar que largariam os seus automóveis
E se recusariam a abastecê-los
Até a poluição desaparecer
E a calma dos sábios chegar
Imaginem só…
Estão a fazê-lo?

Gosto de ler poemas
Em voz alta
Recuso os romances
Leio só os que são poemas envergonhados
Dos poetas que têm de os escrever
Para matar a fome
Seja Bolaño ou Lobo Antunes

Gosto de ler poemas
Completamente nu e rouco
Se bem que com roupa e com voz
Gosto desses poemas
Concebidos pela lição de Cage
Escutam-se de olhos fechados
E são de graça
A música da cidade
A música da industria
A música dos cães
A música das telefonias esquecidas
A música das crianças
E a música dos corpos
Claro que de olhos fechados
E braços abertos
A polícia manda-me circular
E manda-me identificar
Não saciada com a poesia
Que afirmo me legitimar
Manda-me fazer testes ao sangue
E pergunta-me que substância uso
Digo-lhes: Camões
E eles percebem o que percebem
E passo a sorrir na prisão
Com a acusação de falta de respeito
À autoridade
Eu que nunca desrespeitei
Nem Pessoa
Muito menos Ramos Rosa

Gosto de ler poemas
Em voz alta e de os gritar
Se o poema o exigir
O mesmo poema que na rua é loucura
No atelier de produção de declamações
Uma honraria
Mas é o mesmo poema
O mesmo poema na voz do poeta televisivo
É um acto genial
Mas na voz do homem desgrenhado
É um acto de demência
Mas é o mesmo poema…

Gosto de ler poemas
De Sebastião Alba
Dum livro que me custou 8 euros
Se fosse vivo
Dar-lhes-ia os 8 euros
E ele mataria a fome
Numa série de dias felizes
Pobre vagabundo-Grandioso poeta
Tenho saudades tuas
E nunca te conheci
Quantas vezes se varreu este poeta,
Como cão com sarna?

Gosto de ler poemas
Escritos em palavras doces e desenhadas
Como as lindas mãos do poeta envelhecido
Os seus desenhos são rosas
E as suas rosas são rostos e sorrisos

Gosto de ler poemas
Em que se esqueça das virgulas e pontos
Como este
E agora faz-se tarde
E o poema está terminado.

Carlos Teixeira Luis (Lisboa)
http://carlosteixeiraluis.blogspot.com

***

EMBRIÃO DE PAZ

Subi a serra em busca de sol.
Lancei-me nas profundezas dos lagos
Ao encontro do silêncio
E mastiguei papoilas enfeitiçadas
Que me ofereceram alucinações gloriosas

Foi aqui, neste divino lugar
Onde as estrelas são colares brilhantes;
A sombra e o ar que respiro
São dádivas benéficas.
Foi aqui que tudo se iniciou.

Jorge Barroso (Borba)
www.explosao-de-cores.blogspot.com

***

QUANDO VOEI DE MIM

Quando voei de mim pra te encontrar
o tempo estava frio
e nem sabia se era longe ou perto...
A chuva ela era densa, copiosa
O vento sibilava nas janelas
na sua voz tenebrosa
como um intenso grito
dado em silêncio num deserto
Mas era ao mesmo tempo um desafio
romper com velhas telas
e te achar
quer fosse longe ou perto
Traçara o teu perfil... a tua imagem...
Será que existirias... mesmo? assim?
De quanto era a extensão dessa viagem
quando voei de mim?
E atrás dos vários rostos
que cruzaram
comigo na distância do caminho,
por entre as várias almas que mostraram
o muito da essência do carinho,
achei-te sob a luz dum céu infindo
num dia que foi lindo
e que eternizo!
Ao pé de ti o tempo vai florindo...
e eu, sorrindo,
não voo mais de mim
que achei o Paraíso.

Joaquim Sustelo (Odivelas)
http://tardesdeoutono.blogs.sapo.pt

***

Estou farta de ser palhaço

Estou farta de ser palhaço
De me fecharem no circo
De me apertarem o cerco
E me taparem o sol

Estou farta de ser palhaço
De me sentir constrangida
De me saber ignorada
De me ter por mal-amada

Estou farta de ser palhaço
Estou farta de me ferir
Farta de fazer rir
E de por dentro chorar

Estou farta de ser palhaço
De riscar o céu de luar
E as nuvens de cor-de-rosa
E na volta nada trazer

Estou farta de ser palhaço
De tudo dar sem receber
Da paga sem merecer
Na noite que me fornecem

Estou farta de ser palhaço
Farta de me inventar
Farta de ser e me dar
Quando logo a seguir me esquecem

Estou farta de ser palhaço
Farta de ser mal olhada
Farta estou de ser pisada
Como boneco barato

Estou farta de ser palhaço
Palhaço de palha e cartão
A quem sacam o coração
Para assar e fritar no lume

Estou farta de ser palhaço
De afugentar os pardais
Com as roupas desbotadas
Em cima de um monte de estrume

Estou farta de ser palhaço
Das cores com que me pintam
Das dores que me provocam
Estou farta de ser palhaço

Fa menor
http://escritariscada.blogspot.com

***

Borbulhar compulsivo...

Há um barco quase a partir
Na enseada do éden
Onde viaja uma flor...e um almejar
Prisão de uma declaração de amor
Veredicto de um acordão a dois
Borbulhar compulsivo de desejo
Labirinto código de destino!

Despeço-me da falésia rasgada
Refresco-me nas ondas atrevidas
Fecho os olhos beijados pelo sal
E agarro-te a cintura provocante
Num passo de dança beijo!

Perguntas-me segredos do amanhã
Respondo-te ...presente ...hoje
Brinco-te anel vaidade bonançoso
E sorrio na cócega do teu exigir
Como página nua de um edital
A rogo do amanhã ...amor!

No aperto comum de corpos nossos
Balbucias metáforas picardia carícia
E ...eu fico invisível no esconde esconde
De um enleio atrevido...mas consentido
Onde fazes cheque mate de afectos
E temperas o ritmo sabor lingual
Ao som da nossa clave lábio!

José Luís Outono (Queijas)

***

A voz que me inventou

Ai, se pudesses chegar aqui,
E resgatar do meu peito,
As tristes e gastas palavras
Que ele silencia,
Far-te-ia de seguida um poema,
Belo,
Perfeito,
Feliz,
Porque me aliviaste a alma,
Do peso de velhos arquétipos que nela trazia.

Ai, se pudesses chegar aqui,
E emprestar-me a tua voz,
Eu usaria novos sons e temas,
Neologismos audazes, tentaria,
Para recriar os sentimentos,
Que há tanto tempo tento observar,
E que no modo deste viver, eu já esqueci.

Ai, se chegasses agora,
Por certo,
Não morria a minha poesia…

Beatriz Barroso (Lisboa)

***

trôpegos os passos em meio das urtigas agrestes.
como uma paisagem desconstruída na tela
onde os rios riem das searas desgrenhadas
e os abutres caminham pausados os vales
despidos da madrugada nas paredes das casas.

uma penitência em tão inóspito lugar
soa a espirais de vento na rota do corpo,
a penumbra no labirinto que sustém as horas.

Maria Manuel Rocha (Aveiro)
http://blogcompalavrasaofundo.blogspot.com

***

Campos de estrofes

O poema ergue-se, expectante,
desafiando o mundo do alto dos
seus versos mais secretos
e contidos. Não espera nada da
verdade, nem das pessoas, mesmo
as que ainda o lêem;
Sabe intimamente que só precisa
de palavras para se compor, e de
coragem para sobreviver à
fragilidade das suas pétalas.

Rita Pereira (Famões)
http://papoilasnachuva.blogspot.com

***

POESIAS FREE

Viva vida ,viva a carne intensa
e vívida e não pasteurizada
por uma infinidade de projetos,
planejamentos, metas,
o vazio do papel matador de florestas!

Ternura
Numa estrutura sem ternura
resta alguma gostosura?

Nas praças cinzas
ou artificialmente coloridas
há alguém verdadeiramente amante?

Folhas soltas lambem o mundo dos cooperados,
conglomerados.

Antonio Carlos Altheman (S. Paulo, Brasil)

***

ESQUECI

o meu
caminho de casa

o sono úmido
útero

o nome dos sentimentos

as mãos
dadas às praças

as flores
as estações, esqueci
o rosto de minha mãe

Eunice Arruda (S. Paulo, Brasil)

***

Ary dos Santos revisitado – acróstico

Abril não se faz no mês de Agosto
Raramente está o tempo a tal disposto
Yes! – grita o burguês indisposto

Depois de lamber beiços balneares
Onde vogam mariscos e lupanares
Só de quem anda na vida dando-se ares

Sabei mais que de Abril – filhos das mães
Andam tantos ansiosos ou medrosos
Nesta terra de saudosos capitães
Todos quantos dão os ditos por não ditos
Ou dão só argumentos pavorosos
Semelhantes aos seus ares… mais aflitos.

Jorge Castro (Carcavelos)
http://sete-mares.blogspot.com

***

A hera

A noite, e a infância.

A R. da Fonte, o seu traçado irregular, o empedrado
rugoso. Antiga. Estreita, só dava para carros de bestas. A casa do
Cândido Guerreiro, misteriosa, donde só entrevíamos o jardim
andalus através da portinhola entreaberta do grande portão
verde, e as altas paredes forradas de heras, com a sua verde
folhagem, a eternidade, e
a fama, a celebridade
imortal

Volto lá, muitas vezes. Intensas vezes.

Uma vez, chego no dia em que estavam a demolir a casa onde vivi.
Tão tosca, mas a mais bela. A ilusão do
conforto envolvente dos ninhos amorosos.
E eu lanço-me de braços abertos, à frente das picaretas – Não
façam isso, Não façam
isso! Essa casa é minha, essa casa é minha
Mas ninguém me ouviu.

Muito mais tarde, visitei Alte. E a casa estava a cair. Em ruínas,
e eu desatei num choro compulsivo.

Mas eu sei que os meus sonhos não me enganam, antenas
entre mim – a realidade –, e o passado, e o futuro.

Há tanto tempo que não escrevo...
Serei assim tão inútil? Uma fraude?
Onde me morreu o Desejo, esse único amante de todas as horas?

Esta noite voltei lá.
As paredes da casa, forradas de heras,
a rua, atapetada de heras. Heras subindo nas casas em frente, subindo
e crescendo
por todo o lado

Myriam Jubilot de Carvalho (Monte da Caparica)
http://myriamdecarvalho.com/blog

***

DOMINGO

Hoje liguei o rádio no máximo.
Para abafar não sei bem o quê.
É Domingo e a rua está vazia.
Talvez tenha sido isso que me tenha assustado.
Acordei cheia de ideias,
mas agora estou parada sem saber o que fazer.
Não posso culpar o silêncio e a paz do Domingo de manhã...
Até gosto do silêncio e da paz que se respira
na manhã de Domingo.
Mas continuo inquieta,
o corpo consciente de si,
dos seus desejos.
Não te suplica,
provoca-te descarado,
ardente.
E o rádio abafa o grito de prazer
com que finalmente se identifica....

Marta Vinhais (Porto)
http://www.amartaeeu.blogspot.com

***
poema in-visual


Heduardo Kiesse (Queluz)
paradoxosdoedu.blogspot.com

***

chegas-chagas

chegas ao pé de mim quase a chorar
como um rio que as margens não conseguem abraçar
as tuas águas vêm de um incerto lugar
chegas sempre com medo de secar
chegas ao pé de mim com uma aliança no anelar
os teus dedos tensos só querem apertar
chegas no calor dos dias sempre a acabar
no vazio das vidas a apartar
quase a tremer quase a tocar
nos meus lábios que te sabem arrancar
o calor da vida o sangue da ferida
que aumenta e fende que tarda em sarar
vens para o meu lado para te encontrares
na margem do leito que em fundo sei carpir
o tapete que sob os teus pés vejo sempre fugir
chegas ao pé de mim quase a dançar
como um louco cujos membros não consegue integrar
as tuas veias convergem para um incerto sangrar
chegas com vontade de me penetrar
os teus dedos galgam as margens da aliança anelar
da minha pele densa fazes tapete para apartar
a ferida aberta que trazes a fugir
quase a cair quase a dormir
chegas como um cão que tem medo de olhar
chagas ao alto num coração por amar

Joaquim Palulo (Carcavelos)

***

VERDADE/MENTIRA

Deveras te procuro
Nos escombros da minha memória
No derradeiro cais alem mar
Da minha desventurada glória

E como num fado
Numa dessas quaisquer ruelas
Iço meu pranto ao vento
Da nau sonho-me as velas

Enegrecidas pelas intempéries
Enegrecidas pela vida
Deveras te procuro
Algures perdida

Num desses mares imensos
E não fora a doce incerteza
Nenhum mar me tragaria
Nem me moldaria a tristeza

Deveras te procuro
Por entre o impenetrável escuro
Da noite que te abomina

Deveras recuso
Do universo o impulso
Que nos domina

Acho-te nem que seja no fim
No fim do que chamam vida
Acho-te, verdade
Nem que te chames mentira

jorge du val
www.poetik4ever.blogspot.com

***

Flash

Edifico-me em versos fundidos nas palavras de uma imagem
renasçendo desta morte de vazio num parto de poema.
Transponho os sentidos de mão dada ao teu rosto tranquilo
Sou outra dimensão.
Na página que abro para te ver, olho o infinito onde te encontro
Mas há regresso
e uma lágrima quente, abruptamente escancara a porta que não se fechará

Sei existir-me remotamente em qualquer canto de ti
num olhar de Maio crepuscular a caminhos do Verbo.

Alebana

***

a casa

É uma casa antiga no fim da aldeia
robusta construída a pedra talhada,
deste lado outro escrevo a memória
dos dias preenchidos:

Não é um poema é uma história
ou uma história-poema
que transporta gestos olhares
odores dos corredores infinitamente
iluminados. Na cal das paredes nascem
gestos em torno dos quadros
e esculturas de bronze com olhar
vítreo que a poalha das janelas escancaradas
à luz diurna deixam adivinhar
no ritmo lento do olhar atento.
Avanço de encontro à luz os objectos
vivem a sua inanidade nas memórias
da casa falam gesticulam
anseiam o toque retraiem-se no seu silêncio,
avançam no mistério
das paredes cálidas figuras
de outro tempo.

Do tempo Al-Andaluz
existe um pátio ladeado
de flores do amor onde o branco iluminado
das paredes repõe o olhar atento
no odor adocicado da atenção redobrada
pelo cuidado interior dos gestos calorosos,
é um pátio para noites de verão:
noites longas de amor intenso
que incendeia de odores etéreos a vasta planície.

Neste gesto calculado da escrita
regresso à casa preenchida:
dos passos lentos no chão esculpido
pelo tempo avanço de espaço a espaço,
do rendilhado abrupto das janelas
a luz da lua deixa antever o teu rosto
esculpido de encontro às paredes:
moves-te num silêncio que é só teu,
demoradamente iluminado
até à penumbra dos cabelos enxameados:
silhueta nocturna que alimenta
a casa antiga.

Manuel Nunes

***

Ideias

Passam velozes por mim as ideias
De onde vêm para onde vão não sei
São repentinos flashes de luz que sobressaltam
E trazem ao olhar mais profundo realidades ignoradas.

As ideias por vezes instalam-se
Insistem martirizam insinuam-se nos sonhos
São as obsessões de todos os dias
Disfarçadas numa luz que veio e ficou.

Outras vezes as ideias partem velozes
Deixam o espírito inquieto num sobressalto de dúvida
Um flash de luz que logo desapareceu
Permitiu entrever outra coisa que era diferente.

As ideias atordoam o espírito
Como chuva de estrelas a desabar sobre nós
Vêm de longe cheias de segredos
Desfazem-se no instante em que as abraçamos.

João Caldas (Lisboa)

***


1º de dezembro


pedro jubilot
http://canalsonora.blogs.sapo.pt

***

à Carolina Prazeres com muito amor

Foi numa motivação divina,
Em tempos de menino e menina,
Que todos nós, sedentos e febris
De amor, deixámos tudo por um triz.

Exangues de uma luta,
Em que a vitória era a queda abrupta,
Hasteamos as bandeiras.
E em vales inexistentes,
Martelamos as madeiras
E fizemos-nos gentes!

Quisemos arquear
Os rectos ângulos,
Que estavam ao dobrar
De uma unanimidade. E misturá-mo-los!,
Com afinco e a preceito!
Sem qualquer resquício de objecto ou sujeito!

Foi uma perfeita loucura
Feita sob uma luz densa e escura.

Foi um arder,
E um ver,
E um ter!
Foi um segundo sem te sentir.
Um barco chorão que, no horizonte, ambos vimos partir.

Zarpava de âncora não recolhida.
Âncora ferrugenta com fado de gente sentida.
Âncora escondida numa serventude de gente vivida.

Senti eu,
E tu, e todos os no céu!
Choraram as estrelas e a partida do coração teu.

Mas tu, meu amor,
Choraste o medo que te evidenciei!
Mutilando-me por dentro sem dor!
Sabes tu e, bem, eu também sei.

João Villalobos (Algés)

***

OS NOVOS AMORES

Dias de viuvez e chuva
O odor da cera e do mogno numa casa fechada
A luz morta das janelas quase cerradas e o pó dos reposteiros
O silêncio da casa e o espaço todo que fora de gatos
Na cozinha ainda entra a luz, branca como os azulejos, em alguns dias escura como os dias feios
Que Deus permita aceitação da quietude
Que nunca a revolta ou a indignação estorvem a morte da casa
Nem a naftalina dos armários, para matar as traças dos vestidos negros
O soalho corrido ainda tapado pelos pesados tapetes
Os candeeiros apagados e as paredes de encardido solene
Nem os tímidos ratos surgem furtivos
O vazio e a memória dos gatos
Viuvez austera. Morte amorosa
Fantasma vivo
Não deixo que o amor maior me permita amores novos.

João Barbosa (Lisboa)
http://infotocopiavel.blogspot.com

***

GERÚNDIO

Reivindicando farpas descontínuas
palavras que assassinam de repente
delírios que sucedem sem sentirmos
montanhas que se viram para a gente

onde as coisas que sim onde os palácios
os amanhãs que nunca mais emergem
onde os lilases da atlântida esquecida
os desejados que não são mas parecem

semelhanças eléctricas guardadas
nos violentos armários de nogueira
espaços alternativos para o nada
silêncio e folhas e sombras e poeira

onde os metros de verde onde a coragem
as tintas como laços como nós
onde os espelhos sem o outro lado
partidos requebrados como a voz

Afugentando espécies magoadas
nocturnos afogados nas barcaças
corrimãos secos curvos agarrados
vestígios de janelas onde passas

onde as canções com claves de cristal
os paraísos vulgares essenciais
onde a sirene a sereia a sensação
de ser crepuscular ou estar a mais

comboios sem família nem destino
em movimento verde-azul visível
rasgões no espaço-tempo onde termino
a busca elementar do impossível

onde o sépia nas caixas de memórias
os ossos triturados pela espera
onde os cavalos de várias cores que não
o fantástico segredo da quimera

Reinventando sonhos ao quadrado
Componentes de casas interditas
Gestos ocultos no mar do meu telhado
Mapas de estradas-ondas infinitas

Mário Domingos (Cascais)
http://www.facebook.com/pages/Mario-Domingos-Poesia-e-Prosa/144132402279544?ref=sgm


***

Finalmente, o poema que foi escolhido para ser gravado em audio pelo locutor/diseur Luís Gaspar:

SOVACO DE COBRA

o sovaco da cobra resguarda o saco dos segredos
à mistura com a mentira dos medos: guarda o que pode
e o que sobra sacode juntamente com os dedos.
é preciso dizer que a cobra engorda aos solavancos
da ira desfeita (olá cobra imprudente -
que como o ponche se ajeita) e à espreita
espoja-se no pó da terra branca. plasma-a a luz
que na acácia se espanta.

mas os segredos – meu deus quantos enredos
se burilam no canto do lobo e eu fico
pasmado como os rochedos resistem à dor
do mar. e eu fico especado perante a tarde
que se deixa cobrar. só a cobra engrena
os desvelos de ficar por aqui preso
pelos cabelos e ser a vontade guardada
na calma tempestade da achada.

salva-me o sovaco: o suor e a canseira
de ser outra ilha de outra maneira.
de ser barco ou ser vento ou ainda avião
numa viagem carpida por dentro. ou não

ou sim. ou talvez assim

Nuno Rebocho


Obrigada a todos pela participação e obrigada ao Luís Gaspar.

Entretanto estejam atentos porque... já amanhã, haverá novo passatempo!

Poesia de Manuel de Arriaga celebra a República nos Açores


Será apresentada, na próxima sexta-feira, dia 3 de Setembro, pelas 21h30, a edição fac-similada de Canto ao Pico, publicado pela primeira vez em 1887, um dos livros de poemas de Manuel de Arriaga (1840-1917). Esta edição vem acompanhada de uma introdução da historiadora Susana Goulart Costa, que pronunciará uma palestra intitulada “O Pico no tempo de Manuel de Arriaga”.
O lançamento decorrerá no
Museu do Pico / Museu dos Baleeiros, nas Lages do Pico (Açores) durante a inauguração da exposição “Manoel d’Arriaga – Canto ao Pico”, na qual poderão ser vistas fotografias da montanha juntamente com poemas deste livro.
Na madrugada seguinte, decorrerá uma subida a pé ao «
Pico mais alto da República», no cimo do qual será hasteada uma bandeira nacional e serão recitados versos daquela obra.
Estas iniciativas inauguram as
comemorações do Centenário da República promovidas pelo Governo Regional dos Açores, através da Direcção Regional da Cultura e pretendem homenagear o primeiro Presidente da República Portuguesa eleito, natural da cidade da Horta (Ilha do Faial).

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


1
Tiago P. Rodrigues
Teatrinho - Espaço de Criação, 2003







Um Corpo ou Uma Alma


E depois do sonho
algo nos faltava
para tanta viagem

(a estrada e o mar
são veias de uma respiração):
Talvez o tempo!

E agora tínhamos
um corpo ou uma alma
uma dor

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Couto Viana na BNP


Está patente, na Biblioteca Nacional, uma exposição alusiva à vida e à obra de António Manuel Couto Viana, até ao dia 31 de Agosto.
A Exposição está na Sala de Referência e a entrada é livre.
Mais informações aqui.

Itinerários com Vítor Silva Tavares

É já amanhã dia 28 de Agosto às 18 horas,
na Casa da Achada / Centro Mário Dionísio.
(Rua da Achada, nºs 11 r/c e 11B, em Lisboa, na Mouraria)

«3ª sessão de Itinerários. Desta vez é Vítor Silva Tavares que nos irá falar do seu percurso: Ir e vir da Madragoa ao Bairro Alto e ao Chiado; ir de Lisboa a Benguela e voltar; ir e vir de Lisboa ao Fundão. Ler, escrever e desenhar. Fazer jornais, fazer livros, fazer capas. Descobrir, inventar, contar, ajudar, viver. &etc &etc &etc…

Haverá também uma exposição de livros da &etc

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Areias onde gregos se perdem
José Viale Moutinho
Espiral Maior, 1998







folo, o centauro filho do sol irmão de circe,
percorreu todas as veias de um corpo
abandonado à porta de um hotel de lagos,

como a pobre espada de um rei deposto,
alteia lia um romance policial, só um vento
quente abafava o fim da tarde de ontem,

assim o sal me cercava, abrindo-se
nas ruas do que resta da cidade, o sol
de novo incomodando a sombra do país,

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Novidades Língua Morta


Será lançado, em finais de Setembro, o novo livro de Miguel Martins, intitulado Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia), com textos seleccionados e organizados por Diogo Vaz Pinto e editado pela Língua Morta.

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Poemas
Paul Bowles
Tradução de José Agostinho Baptista
Assírio & Alvim, 2008






MENSAGEM


Ninguém gritou no Verão
Os dias eram quartos quentes
Pelos irrespiráveis corredores das noites
Um dragão atravessou as pontes do som
Com o brilho das suas escamas e arrastando a cauda
Através dos soluçantes parques, assustando os ratos

Tropeçando desceu as ruas e afastou-se da colina
O seu riso percorreu o serpenteante rio
Todas as cúpulas da cidade estremeceram no seu alabastro
E junto às árvores dos subúrbios do sul
As ervas mais secas quebraram-se e enrugaram-se

1929

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Cynthia Livro Segundo
Dórdio Guimarães
Edição do Autor, 1966







JUÍZO A GIZ

Cidade. Tapete rolante livro folhagem dossier negro
aberta noite de luzes pensar passar
avulto avulso de pés carnaduras ágeis
figurando pagens soltos passeantes de parques.
Cidade ébria de fósforos luminosa
pirotécnica de olhos de bocas silêncio.
A nuvem do desgosto em cada homem de sobretudo
preto. Tessitura de tecido duro pesado quase frágil.
Ternura tépida que chora o forro coração
agasalhado ardendo galerias insuspeitas tensas
abandono quente.
Foi isso que impeliu enormes caixas de música
à avenida dos que passeiam.
Que lhes tirou o fluido nevoento do andar.
Que nos trouxe até candeeiros azuis
de não dizerem nada.
Foi isso isso tudo que coseu os bolsos. As luvas.
Sim as luvas de pano bordadas aborrecidas
as luvas de enganarem mãos
como fendas no vestuário.
O logro talvez a alegria de mentir
hipótese de pele estranha talvez o gosto
gasto de garantir o macio maio mais amor
quem sabe se o astro cada vez mais branco
e distante ao microscópio.
Glóbulo leucémico no sangue ir
mais longe e doente Graal do amor. Amor. Que é isso?
Eu toupeira das horas tu amazona
amiga de dormidas árvores.
Ó lusíada em seu terraço- astronomia.
Sábia a lua espia!

Ambulância e uma mulher no ventre ferida.
Caramba. Foi menos um homem nascido?
Nisto o relógio pára. Amo-te. Amo-te. Amo-te!
Socorro... Ele contigo ou comigo seria parecido.
Escrevo tenazmente desde o papiro.
Longe longe longe aquele suspiro
de luz é apenas uma estrela caída.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Fernando Pessoa em exposição no Brasil


Foi inaugurada hoje, no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo (Brasil) uma exposição intitulada Fernando Pessoa, plural como o universo. Trata-se de «uma homenagem aos brasileiros, que estão entre os primeiros que apreciaram Fernando Pessoa», afirmou Richard Zenith, que há largos anos estuda e traduz para inglês a obra do Poeta e que, juntamente com o catedrático Carlos Felipe Moisés, assume a curadoria da exposição.
Trata-se de uma mostra interactiva onde poderão ser vistos poemas impressos e projectados, fac-símiles de documentos, imagens de Pessoa e quadros de pintores portugueses. O visitante poderá também visualizar um vídeo feito pelo documentarista Carlos Nader, com argumento do Poeta brasileiro Antônio Cícero.
A exposição, a propósito da qual foi criado um site, estará patente até 30 de Janeiro de 2011 e será transferida para o Rio de Janeiro em Março.

Elegia da lembrança impossível

O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.

Jorge Luis Borges
(tradução de Fernando Pinto do Amaral)

Interpretado pela Andante:

Voz: Cristina Paiva; Música: György Ligeti; Sonoplastia:Fernando Ladeira

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Flor de Jacaré
Jorge Monteiro dos Santos
Limiar, 1977







esta canção de frutos
enrolados sobre o corpo
atravessa a boca
pelas rugas da manhã

vem espancada
por dentro da carne
enegrecida sobre a terra

mas vem madura
como o rio do povo
(desagua)
pelo ventre das cidades

em vagarosa liberdade.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Edwin Morgan (1920 - 2010)


Morreu, no passado dia 19, aos 90 anos de idade, o Poeta Edwin Morgan, considerado uma das mais importantes vozes da literatura escocesa contemporânea.
Nascido em Glasgow, ensinou Inglês, durante mais de 30 anos, na sua cidade natal, onde se havia formado.
Autor de uma variada obra poética, que vai das formas clássicas, como o soneto, até à poesia visual, Morgan tinha por influências principais, autores como Maiakóvski, William Blake, Eugenio Montale ou Allen Ginsberg. Foi também ensaísta e dramaturgo, além de tradutor profícuo, tendo vertido para inglês textos russos, húngaros, franceses, alemães, italianos, latinos, espanhóis e portugueses.
De entre as numerosas homenagens que recebeu ao longo dos anos, destacam-se a ordem do Império Britânico, em 1982, a medalha dourada da poesia, em 2000 e a nomeação, em 2004, para primeiro poeta nacional, ou Scots Makar.


Chaffinch Map of Scotland [Mapa da Escócia do Tentilhão] , 1965

domingo, 22 de agosto de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Antologia Breve
Obra de Eugénio de Andrade/25
Fundação Eugénio de Andrade, 7ª edição, Maio 1999







O sorriso


Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso

O sorriso

sábado, 21 de agosto de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


O Lugar de Estudo
Fernando Echevarría
Afrontamento, 2009







Não cabe em nome algum. O que lhe demos
apenas dele nos diz quanto nos falta.
Que nomear é reduzir a objecto
de submissão quem alicerça a dádiva.
E a dádiva o que dá é um dar aberto.
Partindo de um recuo de distância
irradia, a nome algum sujeito
ou, se algum se lhe der, é o que o afasta
da precisão estrita de conceito.
Então só resta que uma escuta de alma
se intensifique para abrir-nos dentro essa profundidade inominada
a dar somente para o sempre imenso.
E desse imenso se divulga a flama,
não só invisível, mas também efeito
da pungência feliz da sua falta.