sábado, 19 de junho de 2010

O CÃO DAS LÁGRIMAS DE JOSÉ SARAMAGO

No livro de Saramago
‘Ensaio sobre a Cegueira’,
já muito perto do fim
da narração desolada,

que conta como uma praga
vai cegando, lentamente,
cada um dos habitantes
de um país imaginário,

(mas que pode ser o nosso,
cegos que andamos nós todos
de uma praga sem nome
que se chama crueldade

contra o nosso semelhante
e a terra que habitamos)
há um cão extraordinário,
que merece referência.

É quando a protagonista,
a única que ainda vê
entre os cegos despojados,
leva os sacos com comida

pelas ruas da cidade
e, sentindo-se perdida
e sem fé de se juntar
ao grupo que acompanhava,

já sem forças para andar,
exausta por tanto esforço,
se deixa cair no chão
e chora desesperada.

Anda perto uma matilha
de cães por ali à solta
e, entre eles, há um
que avança para a mulher

e lhe vai lamber as lágrimas,
como que a querer dizer
que, na cegueira em que estamos,
por estranho que pareça,

venha de bicho ou de homem,
há sempre uma proximidade
que entre nós se destaca,
por um gesto que fazemos,

ou algo que recebemos
de que não estamos à espera,
por mais precário que seja
o nosso devir no mundo.

Por mais cegos que estejamos
para o que vai à nossa volta,
desgaste-nos o desespero
ou até a indiferença,

o certo é que a humanidade
jamais nos perde de vista,
sendo que, inversamente,
a humanidade que temos

perdura dentro de nós,
por mais cães que encontremos
que nos rosnem ao destino
ou lambam as nossas lágrimas.

Amadeu Baptista

Do livro inédito ‘Cão Paixão’ (infanto-juvenil)

1 comentário:

Anónimo disse...

Que bom!
Gosto muito, parabéns.
Cristina Paiva