domingo, 14 de fevereiro de 2010
Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia
Os Selos da Lituânia
Amadeu Baptista
&etc, 2009
substituí no coração o meu avô, que era barqueiro,
por este homem que morava no segundo andar
do prédio em frente. à porta, sobre uma coluna de madeira,
tinha uma begónia sempre florida e uma avenca,
e só me permitia entrar sob promessa
de estar calado e de, em caso algum, tocar em nada.
invejava-lhe a caneta azul-escuro montblanc, com aparo
de ouro, quase igual à que alguém me ofereceu
no último aniversário, e a caligrafia taquigráfica
que eu não sabia ler, mas admirava,
pelo negro brilhante a inscrever-se
no papel branco ou lilás que utilizava.
ele escrevia quase incessantemente.
à tarde recebia muita gente que trazia,
em pastas de couro muito velhas, inúmeros
documentos, áscuas de um mistério
absoluto. analisava tudo pormenorizadamente
e, com minúcia, anotava-os, sempre em busca
de um detalhe talvez inesperado e valioso, que o fazia
ir à procura em livros muito grossos
de coisas que ninguém mais entendia,
com os óculos de massa puxados para a testa
e um lápis viarco atrás da orelha. gostava imenso
de contar histórias, o que acontecia
quando estava bem disposto e se sentava
na poltrona forrada de veludo, ou porque os negócios
lhe corriam melhor do que esperara
ou o almoço estivesse para além das suas expectativas.
fazia uns cigarrinhos que fumava e deslumbrava-me
a extrema destreza com que punha
entre os dedos os fios de tabaco e os enrolava
na mortalha, molhando-a com saliva,
num movimento rápido dos lábios e da língua.
depois, ficava horas a desfiar aventuras em cima de aventuras,
que só tarde demais percebi que inventava
e nada tinham a ver com a sua própria história,
embora hoje ainda me espante como divagava
assim sobre tigres e leões sem os ter visto alguma vez
e as suas viagens não passassem
de tristes itinerários entre os guindais e a cantareira.
falava sobre os vulcões da islândia e o mar de riga
com a familiaridade de quem lá tivesse vivido a vida inteira
e o seu olhar adensava-se sobre as coisas
como se nesse momento estivesse de partida.
havia dias em que estava deprimido
e mais para o fim, um dia, reparei
que secretamente observava
um volumoso conjunto de postais
de mulheres nuas que mais tarde
vim a encontrar reproduzidas numa edição
da forbiden erotika e o devem
ter aliviado do desalento de estar um homem velho
e muito fatigado deste mundo
que vale muito pouco para quem, como dizia,
já passou dos setenta e está casado
com uma megera há tantos anos
que só mesmo uma angina de peito faz sentido.
também para o fim, já não tolerava
mais nenhuma presença além da minha
e a de um gato siamês a que estimava
e dava lições de canto ao som de um disco
da callas, sempre o mesmo,
sempre na mesma faixa, durante tempos e tempos
infinitos. no dia em que se foi, jurei para mim mesmo
não mais entrar naquela dependência
e o faria não em sua memória mas em nome
do que me soube e quis ensinar com tanto afecto
e argúcia. é dele que preservo
os selos da lituânia.
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2 comentários:
Um ilustríssimo poeta português! Que poesia maravilhosa!
Eduardo B. Pinto
É um livro comovedor, no sentido estrito de causar comoção, escrito como que a arrancar a pele, segundo alguém dizia de Camões na Canção X. Há várias passagens deste livro de grande qualidade poética, cuja intensidade comparo à daquele nosso maior poeta. E a capa é uma maravilha.
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