domingo, 8 de fevereiro de 2009

Na estante de culto

Dispersão
Poesia Reunida

Nuno Dempster
Edições Sempre-em-Pé

Está nas livrarias há poucos dias, este belíssimo livro de 290 páginas com 216 poemas de Nuno Dempster, que engloba quase toda a produção poética do autor (de 1998 a 2008).


ÍTACA

........Quando partires, em direcção a Ítaca,
........
que a tua jornada seja longa (...)
........
Konstantinos Kavafis

Se ao longe imaginares Ítaca,
que não te dê saudades.
Uma ilha é um monte sem caminhos.
Descansam nela as aves migratórias,
e a gente que a povoa
gasta o tempo a sonhar aonde irão
as aves no seu alto voo
quando partirem.
E sobretudo Ulisses há-de
segui-las com os olhos,
lembrando-se de Circe.
O azul, digo-te, é uma cor volúvel,
e o céu e o mar são só desertos.

..................


Não é sem alegria que olho em volta,
mesmo nesta hora longa de inventários
virtualmente unidos num apenas,
atravessando o tempo construído
com paciência, verso a verso,
até exaurir o que parece inexaurível.
A memória é um largo campo
com imagens tão díspares
como o voo dos patos ao cair do sol
e um homem trespassado de estilhaços
na selva da Guiné, sem perceber
porque a vida se lhe ia com o sangue,
talvez selando o peito
com a palavra azar, sem nenhum deus
ou lugar que o remisse, bicho casual
que deveria ter nascido anos depois
para tentar a sorte, o carro, a casa,
a mulher que o esperava com os dois anéis,
a vida degradada e o país podre,
com certeza pequenos sinais usados
em prosa de ficção, evitando-se a mãe
que chorava em silêncio a sua morte,
isto é, o melodrama, precisando:
o excesso de verdade, arquétipo difícil.
E no entanto não é sem alegria
que olho em volta de mim,
por dentro de mim mesmo, e sei
ter visto algo só meu,
as estrelas cadentes do Verão,
aquelas que riscavam certas noites
e que não mais irão voltar.
Não falo das estrelas
que atravessam o céu como antes,
são meteoritos apenas,
mas das noites vividas, horas únicas,
não interessa qual a sensação,
sequer os sentimentos que seguiam
o traço luminoso e breve,
interessa a riqueza vária e vaga
que juntei e descrevo longamente,
ó doce solidão enumerável.


"Nuno Dempster, nascido em 1944 na Ilha de São Miguel, Açores, inicia com Dispersão - Poesia Reunida, um trajecto invulgar na poesia contemporânea. E invulgar, desde logo pela estreia tardia, pela dimensão e pelas características deste volume que, como se explica na Nota que o encerra, inclui poemas escritos ao longo de mais de dez anos, organizados em sete áreas temáticas que bem poderiam constituir-se em livros independentes. Assim agrupados, representam a diversidade dos assuntos que o percorrem e lhe conferem uma dispersão e amplitude hoje pouco comuns. Poesia mais reflexiva que efusiva, encontra o nexo estruturante num discurso muito próprio e na incessante indagação acerca da existência do Homem no tempo pessoal e histórico que lhe é dado viver.
(...)
Depurado e sóbrio, com preferência pela frase longa, pelo verso livre só na aparência, pelo decassílabo e pela acentuação na sexta sílaba, Nuno Dempster parte de uma rica tradição poética de que se revela herdeiro, sem cedências ao comum. Na claridade do seu olhar poético, na música dos seus versos, perpassa um desencanto, uma melancolia subtil porque toda a beleza é efémera ou intocável, toda a comunhão, adiada, o passado sem remédio, e a vida, enfim, uma brevidade sem apelo."
Soledade Santos

1 comentário:

Amélia disse...

Um belíssimo livro de um grande poeta.
O melhor -para mim - livro de poesia portuguesa que li em 2008.