quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


A Viagem
Tchalé Figueira
Edição do autor, 2012








II

Nas suas naus arribaram; ilhas vulcânicas, em paleolítico
repouso, a primeira missa, com répteis e pássaros,
baptizaram-lhes com nomes que não advém de Deus,
mas sim dos homens, da sua memória...

Bíblia e espada, pólvora e grilhetas, espelhos e
missangas, gente esbelta, negros e negras, belos como a
noite...

Nocturno azeviche, reténs e chicotes, úlceras e ultrajes,
negreiros malditos, homens marcados, a ferro e fogo;
nasce o Novo Mundo: The Blues, el merengue, e
el uáuánko, quatro por oito, kumba lele, Xango,
Ogum, Yemanjá, outro lado do mar, algodão em
rama, Coton Clube negro, crioulo é o jazz, que vai
libertando-nos, para renascermos...

Com o destino, aqui ficamos!...

Dermes brancas, rosas negras, melaço nos lábios, cor
de mulato, peixe, feijão, milho e pilão, cavaquinho nos
dedos, divinas mornas, este mar imenso, que nos
rodeia, festa das águas, se Deus quiser, penedo de
Tântalo, sede secular, fonte amputada, língua
murchada, morremos e ressuscitamos, nosso
desespero, teimosamente aqui estamos...
Daqui zarparam, naus e veleiros, braços de pedra,
arpoadores de cetáceos, ondas gigantes, gentes
remotas, filhos do fogo, dez ilhas secas, sede sem
fim... Xango, Uatanka, Cristo, Schalom, sou negro,
índio, lusitano, hebreu, marinheiro das ilhas, num
norte sul, cheiro a goiaba, delicioso carpo, orgasmo
forte, fruto colonial, carrego em mim, continentes e
mundos,

querer ficar e ter de partir!

Penélope acena, com seu lenço de pedra, lágrimas
secas, dias rasgados, membros calcinados, exiladas
almas, cartas que chegam, modas e moedas, epístolas
de luto, luto e amor, matrimónios por fotos,
procirações... bodas em Lisboa, Roterdão, Bostom,
Paris... visto de entrada, carta de chamada,
convocações...

Censuradas cartas, Salazar voraz, Tarrafal farpado,
frigideira queima, pulmões rasgados, ratazanas e
rondas, camaradas delidos, carne de canhão,
chumbo de indecência, irremediável loucura, círculo
craniano, réptil milenar, nocturna demência,
navalhas loucas, baionetas frias, fresca é a carne,
heróis na peleja, mortos e medalhas, matam e morrem,
anos sem fim,
há tempo para tudo, aqui neste Mundo...

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