terça-feira, 6 de setembro de 2011

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


K3
Nuno Dempster
&etc, Janeiro 2011







(...)
O poema está a ser escrito
numa noite anormal de Junho,
encharcada de vento e chuva fria,
do ano dois mil e dez,

muito depois de os mortos
terem largado, rumo
ao Terreiro do Paço, e de o ocuparem
por mão daqueles vivos que gritavam,

e eu ouvia estourar ainda
a emboscada à coluna em que não fora,

clamor de um tiroteio tão unânime
que parecia um todo só,

um pelotão
a lutar com João Evangelista
e com os seus corcéis
a galopar no céu em chamas.

Era o regresso da besta
que dividia os vivos e obrigava
gente contraditória
ao jogo de matar e de morrer,

enquanto analisa cálculos
e dados estatísticos
dos nomes que são números,
os números que envia em porões cheios
ao largo da costa de África,

e não pensa no Infante,
nem em Nuno Tristão e sua morte,

desconhece que o início gera o fim,
não retira sinais do tempo.

A besta é uma hiena com cabeça humana,

e vem depor-me aos pés
dois corpos da emboscada.

Aqui estão diante dos meus olhos,
em duas macas, à espera do helicóptero
que afinal não chegou a vir:

o milícia, crivado de estilhaços,
respira ainda,
o soro não vai salvá-lo,
negra esponja de sangue sem um grito,

e o sargento abatido no ajuste final,
com um tiro na nuca, seco, pelas costas,
ambos réus em juízo sumaríssimo,

violência elevada à funda insanidade
que poderia ter-me submergido.

A vida subira à contradição maior,
que é caminhar no fio da loucura,
dia após dia, e ainda assim marcar
esse tempo passado com riscos
atrás da cabeceira, onde o sono se afunda
em animais feridos,
cujo rosto a dormir se não relaxa,
são tiques repetidos,
são breves e odiosos tiques,
desvairam pesadelos
e brados repentinos,
e olhos cegos no escuro,
doentes soerguidos de pavor
que imprecações obrigam a voltar
ao fremir do silêncio,

até a alba nascer,

altura em que os outros
vêm com as pesadas armas proibir-nos
de manter a defesa em quadrado ,
que tínhamos trazido
de Aljubarrota
para Quebo cercada
dos quatro lados,

Quebo, onde os espiões convivem,
sem que nenhum de nós se importe,

estão ali
à espera de saber quando haverá
colunas para Buba,

e foram transmitir que um condutor
esfacelara a mão direita
na boca da G3, enlouquecido
os olhos sob a estrada, nos fornilhos.

só se ouvira a rajada,
ninguém soube da mão,
poucos o quiseram ver
entrar para o helicóptero.

Não há quem fite o seu próprio desespero.
(...)

1 comentário:

Cristal de uma mulher disse...

Olha a poesia nos traz traços de sensibilidade e sonhos e nada pode calar esta literatura daqueles que tem ela no sangue.

Sempre como uma luz vc aparece em meu cantinho e assim sendo te deixo a mesma luz para que possamos juntar tudo e clarear nossas vidas mais e mais

Beijos muitosssssssss