domingo, 18 de julho de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Gravador de Chamadas
Paulo Pais
Campo das Letras, 1997







FIGURAS DE APEGO

I

De anjo tens bem se vê os caracóis
que os anjos não se penteiam já se sabe

assim também o corpo ainda belamente em desacerto
ficará perfeito e pronto como tudo o que cresce maduro

e tens nos olhos a confiança do pássaro-lua
que em círculos se afasta tem de ser
filha de pássaro transparente toda nua
de asa a extremo de asa



II

Às vezes um anjo dorme lá em casa
rítualiza a sua figurinha quente de inocência
com o à vontade da sua condição - sabe ao que vem

é um anjo que fala mais do que ouve
e mais do que ele compreende (os anjos hoje vão à escola)
enquanto solta pela casa finos lampejos de luz de oiro

deita-se com ele nas dobras de vapor celeste
agarra-o nas asas de pássaro-lua
ri-se do seu riso de paz dos céus
afasta restos de nuvens adormece sem dar por isso

de manhã deixa-lhe em bicos de asas
um beijo de acolhimento
e ele fica a olhar no sítio em que dormiu
um rio azul de poalha brilhante



III

Os anjos preocupam-se com a desordem do mundo
pressentem os fungos nos ossos dos que se deitam com frio
a densidade salina das lágrimas
o volume do medo das bestas na hora do abate

por vezes definem com astúcia a tensão do sangue
seguram a mão na pressão exacta controlam a voz com
aptidão exemplar

pai, gosto muito de ti
e a infância escorre pelo rosto da memória
entretidos os homens com os recados da inocência

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