sexta-feira, 2 de julho de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


O Som do Vermelho
Tríptico poético sobre pintura de Rogério Ribeiro
Amadeu Baptista
Campo das Letras, 2003






3. QUADROS PARA UMA EXPOSIÇÃO


não digo que o meu coração pulsa, digo
que pulso com o meu coração.
neste sentido, o que quer que faça,
surge de mim com a mesma acutilância
do que, comigo persistindo, expressa
a inquietação de quem, não tendo asas,
ousa voar, pintando. por um lado, vejo.
por outro lado, pinto. e tudo a que aspiro
é esta perturbação imperturbável
que vem da luz e o mundo transfigura,
sem que ignore, em qualquer momento,
que também surjo do mundo e nessa luz
evoluo, a questionar o mistério e o sortilégio
em que aqui chego, como um sintoma
de tudo o que existe no universo
e é, comigo, a expressão da ressonância
que viaja pelos tempos para todo o sempre
e pela variedade infinita se define. assim,
conquisto pela cor e pela luz
a doçura possível que enquadra
a tensão em que tudo coexiste
e como uma narração procede do amor
e em drama e invenção se manifesta
ocultamente, para que se entenda
a explicação da urgência, a relação suprema,
o contraponto entre a arte e a natureza,
a turbulência, a nitidez, o ofício.
falo, antes de mais, dessa energia
que as formas geométricas corporizam
e não são mais que figuras de nós mesmos
em permanente mudança, a fluir
no que se adivinha e pressente
onde as pulsões se juntam e concorrem
para melhor discernir a solidão, o medo,
a incontornável cronologia das várias circunstâncias
onde nos perdemos ou nos encontramos
como ascensão e queda, ou apurada
enunciação da ascese e do desejo.
pela memória assumo os pressupostos
do que o fio do novelo guarda em si
para que se não esqueça o caminho percorrido
e as suas qualidades, tantas vezes
cercado por negrume e asfixia, tantas vezes
tão próximo da ruína e do extermínio,
tantas vezes acossado pelo que acumula
vazio nos monturos, cadafalcos, forcas.
pela memória assumo a diligência
de averiguar o que é estrela fixa
e no ponto de fusão ao cosmos acrescenta
um lugar de partida e de chegada
a esta passagem para outra luz
onde a luz é um ímpeto e uma espera
implícita para quem sonha e reproduz
no voo um voo esplendoroso
e no desterro uma hipótese, ainda.
pela memória assumo quanto vi
e instaurou nos meus olhos a avidez
e o deslumbramento, pelo auge
das coisas e o seu abismo, pela marca
irredutível que as forças em presença
propagam sobre nós, ampliando
o carácter da obra, a sua estripe e alcance,
a sua dívida à dúvida estabelecida.
na oficina, milímetro a milímetro,
outro combate enfrento, como se
ao material da memória viesse acrescentar-se
uma presença física carregada
do que é em mim a génese de um destino
e o seu entendimento, uma estranheza
que só em algumas coisas reconheço,
seja um caderno branco ou um jogo de anilinas,
um cavalete ou um labirinto,
seja um livro por ler ou o escuro vão de escada
onde vou amontoando frascos, pincéis,
tubos de tintas, figuras mitológicas,
cubos, triângulos, panos coloridos.
eu sei que essa presença é como uma ilusão
e que toda a ilusão é uma traição
no exacto sentido em que o desvendamento
é sempre uma ocultação do que se mostra.
por isso a minha arte é este rosto
em que continuadamente convoco a invenção
e nó a nó a corda do desenho
é parte convulsiva do que digo
e vou acrescentando ao mais vulgar sentido,
por ser a parte pertinente desta história
em que a história se vai redefinindo
para que o clímax se atinja e a floração irrompa
sob a forma de um silêncio
que não é mais que um grito inexorável.
estou na linha de fogo, o mais das vezes.
e o que me sitia provém de um imaginário
em que o combate comum se apresenta
como um mito maior nas nossas vidas,
um arrepio que ferve e ruge ancestralmente,
um sonho que se inscreve noutro sonho,
formas e brilhos sempre irreversíveis,
a busca permanente e assumida
da paz nos dois lados da muralha,
a ênfase da partilha, a procura
de outra noite no que a noite
contém de indizível, ardente, impetuoso.
em cada fuga que na praia se prepara
e represento com cores fundamentais,
em cada corpo que intui a viagem
e ponho sobre a tela como aparição
explicitamente disponível
para o arrojo do voo e da ousadia,
por cada incógnita que a moldura circunscreve
com feixes de murmúrios e plenitude,
em cada quadro dentro de outro quadro
e a lenta irrealidade com que cito
a transcendência, o fascínio e a intimidade,
em cada abstracção, em cada névoa,
em cada perspectiva,
é o enigma que exprimo,
o dom de adivinhar,
a veemência com que somos errância e origem
na síntese possível
do eterno retorno da pintura
e a transfiguração subliminar.
por um lado, vejo. por outro lado,
pinto. e é como se tivesse
uma dupla pupila sob a reserva
que na alma levo,
vencendo assim um obstáculo e outro,
notando como a mão
a segurar o pincel
é potencialmente uma asa,
talvez precária,
talvez rudimentar,
mas não menos asa sobre o espaço
e a matéria,
enquanto sou um deus
castanho,
negro,
vermelho,
amarelo,
verde,
azul,
ou branco
a abrir janelas sobre o firmamento,
para que nos possamos ver,
dizer,
criar.

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