Olhar o Silêncio
António Ferra
Europress, 2005
3.
Parti num barco de remos, atravessei o Tejo, esse rio onde me deito e vomito. Cheguei a Creta cheio de sede, com o fato engelhado e com algumas manchas de óleo. Só me apetecia mijar, mijar. Uma mulher muito velha soltou uma gargalhada estridente, como se usasse uma palheta entre a língua e o céu da boca. Depois sumiu-se entre os pinheiros e gritou «vai, vai dar de beber ao rapaz». Logo de seguida apareceu-me um homem de quarenta e tal anos, moreno, cara picada das bexigas, cabelo cheio de brilhantina, de camisa branca e mangas arregaçadas, com uma cobra dentro de um frasco. «Vá, bebe, isto vai trazer-te a força que deixaste pelas feiras, onde palhaços e trapezistas te serviam de entretém.»
Não aguentei a visão daquele líquido verde, mas sabia que era culpado de tanto me alhear dos grandes problemas da cidade. Pedi-lhe que me deixasse em paz, mesmo assim, para enfrentar o monstro.
O touro de duas cabeças nem sequer reparou em mim. E uma mulher de meia idade, um pouco gorda, mamas a rebentar costuras, de lábios mal pintados com um baton muito vermelho, vestindo uma saia branca com renda rosa na roda, dançou num cenário falso, representando uma rua da cidade antiga, basalto no chão, roupa a secar, candeeiro desluando o luar.
De manhã tudo parecia diferente, diria mesmo que já não estava na mesma terra. Ajeitei o fato cinzento, passei água na cara e dirigi-me para Cais de Creta. O barco de remos tinha desaparecido e eu escondi-me dentro de uma caixa de coletes de salvação que havia num hovercraft. Pouco depois sulcava o Tejo de sulcos. Quando saí, reparei em dois marinheiros bêbados que se afastavam das ruas interiores do Cais do Sodré. Tudo se desenhava em tons de amarelo vivo. Na rua, junto à estação, cheirava a merda. Mas logo adiante havia flores e um homem de face tisnada e bexigosa vendia banha da cobra e gritava:
"milagre, milagre!"
Parti num barco de remos, atravessei o Tejo, esse rio onde me deito e vomito. Cheguei a Creta cheio de sede, com o fato engelhado e com algumas manchas de óleo. Só me apetecia mijar, mijar. Uma mulher muito velha soltou uma gargalhada estridente, como se usasse uma palheta entre a língua e o céu da boca. Depois sumiu-se entre os pinheiros e gritou «vai, vai dar de beber ao rapaz». Logo de seguida apareceu-me um homem de quarenta e tal anos, moreno, cara picada das bexigas, cabelo cheio de brilhantina, de camisa branca e mangas arregaçadas, com uma cobra dentro de um frasco. «Vá, bebe, isto vai trazer-te a força que deixaste pelas feiras, onde palhaços e trapezistas te serviam de entretém.»
Não aguentei a visão daquele líquido verde, mas sabia que era culpado de tanto me alhear dos grandes problemas da cidade. Pedi-lhe que me deixasse em paz, mesmo assim, para enfrentar o monstro.
O touro de duas cabeças nem sequer reparou em mim. E uma mulher de meia idade, um pouco gorda, mamas a rebentar costuras, de lábios mal pintados com um baton muito vermelho, vestindo uma saia branca com renda rosa na roda, dançou num cenário falso, representando uma rua da cidade antiga, basalto no chão, roupa a secar, candeeiro desluando o luar.
De manhã tudo parecia diferente, diria mesmo que já não estava na mesma terra. Ajeitei o fato cinzento, passei água na cara e dirigi-me para Cais de Creta. O barco de remos tinha desaparecido e eu escondi-me dentro de uma caixa de coletes de salvação que havia num hovercraft. Pouco depois sulcava o Tejo de sulcos. Quando saí, reparei em dois marinheiros bêbados que se afastavam das ruas interiores do Cais do Sodré. Tudo se desenhava em tons de amarelo vivo. Na rua, junto à estação, cheirava a merda. Mas logo adiante havia flores e um homem de face tisnada e bexigosa vendia banha da cobra e gritava:
"milagre, milagre!"
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