sexta-feira, 2 de abril de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


O Cavaleiro de Bronze e outros poemas
Aleksandr Púchkin
Selecção e tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
Assírio & Alvim, 1999





O Profeta


Com o espírito morto de sede,
Rojo-me num deserto escuro,
E voa um anjo de seis asas
Na encruzilhada dos meus rumos.
Com dedos leves como o sonho
O serafim toca-me os olhos:
Uns olhos profetas se abriram
Como os da águia assustada.
Eis que me assoma os ouvidos
E os enche de alvoroço:
Escuto o tremer do céu, o alto
Voo dos anjos, o deslizar
Subáqueo do monstro marinho
E a rosa a crescer no vale.
Sobre minha boca se inclina
E arranca a língua ardilosa,
Carpideira, iníqua e vã,
E com a dextra ensanguentada
Põe o dardo da sábia cobra
Na minha boca silenciada.
Com a espada me corta o peito,
O meu coração latejante
Despega, e no vão negro do seio
O anjo mete a brasa viva.
Estou, como morto, no deserto
E a voz de Deus por mim clama:
«Ergue-te, ouve e vê, profeta,
Da minha vontade te tomes,
Mares e terras percorre, queime
Teu verbo o coração dos homens».

[1826]

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