quarta-feira, 24 de março de 2010

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


Vou-me embora de mim
Joaquim Pessoa
Litexa Editora, 2002








Sei lá se quando morrer serei famoso.
Sou um doente acamado no Hospital das Letras,
as minhas dores são agora só as minhas dores e não as dores do mundo,
os meus sonhos confundiram-se com realidades frequentemente hostis
e quase sempre banais. Tenho alguma dificuldade
em respirar, esteja virado para onde estiver.
A cabeça dói-me. Está cheia de palavras. Penso verde.
Um verde lânguido e perfeito. Preciso. Verde súbito,
claro e raro. Que de tão verde cega. Que de tão verde esmaga.
Que de tão verde cresce. Um verde tão verde
como o verde que não há. Verdemente aceso
na minha noite verde, no meu quarto verde,
esmeralda profundíssima, levíssima e imensa.
Imenso verso verde, reverso de um outro verde intenso: o universo.
Eu sei lá se isto é já morrer, por ser assim. Sei lá se ser famoso é não morrer.
Neste Hospital das Letras uma coisa sei, uma coisa sinto,
uma coisa não me larga o pensamento: são as palavras
que nos matam. Não essas palavras duras, doidas, inexactas,
mas exactamente aquelas doces, quentes, responsáveis. As mais simples e amigas.
Aquelas que escrevendo-as nos escrevem. E que ao dizê-las
nos perseguem. E que ao pensá-las nos esquecem.
E eu vou morrer assim, minado de palavras. Tentando despojá-las,
mas nelas procurando o que há em mim, eternizando os mínimos momentos,
joeirando os seus cristais de som. E sei que sou delas a matéria
de reprodução. Sou delas alimento. E nelas me dissolvo.
Sou o doente que ao morrer devolve a própria vida. Às palavras.
Por mais frias que sejam. Ou belas, claras, disformes, pequeninas.
Todas elas festejarão a minha morte.
Todas elas serão as assassinas.

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