quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Um livro de poesia a cada dia...
nem sabe o bem que lhe fazia


migrações do fogo
Manuel Gusmão
Editorial Caminho, 2004







Uma criança interrompida

Esta criança é uma lâmpada que assustada
se apagou. Nem mapas nem paisagens já
nada a espanta; nada a pode já espantar –
o mundo conhece-o pequeno: é uma prisão
tão apertada ao corpo que lhe tolhe os desejos
e o riso, os jogos e a invenção.

O seu poço, os ecos que nele teriam
brilhado, o labirinto fragrante dos tecidos,
dos arcos e das portas casa após casa
são agora ruínas sobre ruínas, escombros
que já caiadas salas e quartos foram, ruas
fendidas sob o céu estéril dos assassinos.

Esta criança tem nas costas tatuada a origem
que se cola ao seu futuro, empurrando-a
para lá, para o destino destinado – de onde vens tu?
– venho de lá e vou para lá. – Não tem origem
que lhe dê p’ra muito mais que uma morte
repetida que cala os lugares e apaga as vozes.

No cinema que ondula a negro entre o seu crânio
e a abertura solar dos olhos – é sempre a catástrofe
um desastre que regressa. Os bárbaros desta vez
vieram numerosos e diversos mas nem sequer
eram parte da solução. Não eram parte de nada
apenas iam e vinham do outro lado deste lado.

É difícil mas supõe que esta criança terá conhecido
uma glória um tempo: Andava de bicicleta
numa paisagem de palha; com os seus se batia
em alta grita. Apedrejava pássaros, cães e soldados.
Agora só uma pequena víbora se deita com ela
no sono e no sonho a morde e a interrompe.

Esta criança é breve.

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