A apresentação vai realizar-se no Centro Cultural Português, em Cabo Verde, na Cidade da Praia.
O livro será apresentado pelo poeta Nuno Rebocho.
Eis o texto que Nuno Rebocho lerá na apresentação:
É difícil apresentar um livro – de poesia, para mais – de autor, um poeta, sobre o qual pouco se conhece: Rui Almeida apenas tem um livro publicado. Um pequeno livro, cerca de 70 páginas, posfácio e índice incluídos. Faltam-me dele referências de um antes, para mim desconhecido, e de outros textos seus aos quais me arrime.
Apenas por três vezes fugazmente me cruzei com Rui Almeida: uma, em Odivelas, há mais de um ano, na apresentação de um livro meu; outra, este ano, em Lisboa, na Casa Fernando Pessoa, no fim da homenagem ali prestada a Arménio Vieira; a última, na passada terça-feira, aqui na Praia, na esplanada de O Poeta, uma conversa que deu sobretudo num reconhecimento de terrenos e levou à descoberta de uma coorte de amigos comuns.
Foi com estes mais que reduzidos acessórios que me atrevi a aceitar a incumbência de vos apresentar este “Lábio Cortado”, o primeiro (e até ainda único) livro deste português, Rui Almeida, que voou desde Lisboa para, “parado na secura da viagem”, conhecer o arquipélago de poetas que Cabo Verde abençoadamente é. Para tamanho atrevimento, foi-me preciso o fundamental e óbvio – ler-lhe o livro. Não se riam: sei eu de pseudo-críticos que se dispensam, de facto e por defeito, de conhecer aquilo sobre que dissertam.
Lendo-o, comecei a perceber que só na aparência “Lábio Cortado” é um pequeno livro. Na verdade, não o é. Trata-se de um grande livro, de um excelente livro, construído sobre arte poética maior, bem patente a páginas 37, que é obrigatório que vos leia:
À pequena raiz do poema
Chega a memória como um centro,
Algo mais do que o ruído metódico das sílabas,
E desaba paulatinamente na mão
Que molda a frase, pousada na caligrafia.
Pequenas decisões agitam o ritmo
Da camada exterior onde floresce,
Para secar, a palavra mais recente.
É de dor o percurso e sinuoso –
Entre esperas e sucessões de vazios
Perde-se a noção de espaço
Na estratégia do equilíbrio.
No poema convergem a semântica,
A pele lustrosa da fala e o nexo,
Pequenos vermes alimentados de pés
Feitos enxame de nomes fáceis
De digerir na língua mordida
Pelos vocábulos não pronunciados do discurso.
Metro branco, rima fácil, desenho
Irregular do verso manco e seco:
Novas excrescências saindo da página
Para acompanhar os que viajam sozinhos.
Ora, este segredo de tomar as “pequenas decisões” que agitam o “ritmo” das “palavras”, correndo o risco de “perder a noção de espaço na estratégia do equilíbrio”, e que deve ser a norma do poema, é o meticuloso e minucioso ofício de Rui Almeida, fautor das “excrescências” que saem das páginas para “acompanhar os que viajam sozinhos”. É desta dor cerebral que se faz a poesia de Rui Miguel Leal de Almeida: uma dor incrustada no córtex cerebral, num qualquer locus, a um tempo pele e sexo, mas toda cérebro que é, ele mesmo, o corpo inteiro;
uma dor acremente apolínea, moldada a partir da natureza (“matéria agreste”), o tijolo da poesis, aquela “matéria agreste” de que fala o “nosso” José Luíz Tavares, cuja poética, paradoxalmente Rui desconhece, mas lhe está geminada;
uma dor pessoana, sobretudo do Pessoa anglófono (das “Transcriptions”), mas também de Campos, de Caeiro, de Reis – tempo virá em que se perceba e aceite que a heteronimia pessoana é unitária, isto é, feita de uma substância só: a “merda da lucidez”, a mesma lucidez que exala nos versos de Rui. É a lucidez de Rimbaud, de quem toda a grande poesia de hoje é filha legítima.
Ora, este “afecto da dor”, parente da angústia, é a essência do nosso hoje globalmente vazio, estiolado e quase estéril, que justifica um Dali ou um Mondrian, um Shostakovich ou um Schonberg, um Truffaut ou um Godard, um Magritte ou um Paul Klee, para falarmos ainda da “matéria agreste”: eles são (pela via da lucidez, essa “lucidez que extravasa a memória”) a humana redenção à desertificação do espaço, ao niilismo conceptual subjacente à economia do agora, à violência das relações sociais, à degradação ambiental, que são telão de fundo sobre o qual se projectam as sombras dos monstros tchalêianos – de Hitler a Staline, de Karadzic a Bin Laden. Enfim, esses terríveis sinais que levam à “incompreensão do mundo”, que é “o mal de estar vivo” e que fazem que o “agora” seja “o tempo em que não dormimos”.
Neste aqui, cada um de nós é cada vez mais um “viajante sozinho”, dolorosamente acompanhado pela sua doce solidão. No entanto, direi que tal lucidez é heróica porque não é solipsista e pode ser venturosa porque recusa a tragédia.
Escreve Rui Almeida:
“Vivos, recolhemos as mãos para falar
Insinuando revelações e proximidades
Enquanto o céu se esvazia em silêncio.
O que procuramos é o jeito da pele e a cor
Dada pelos lotes de terreno abandonados
Que se tornaram logradores espontâneos”.
Diz Rui Almeida:
“Sem denúncia ou risco
Em relação às perdas e às ausências,
Sou pouco mais do que a contenção da boca
Com que se prende a sucessão do tempo”
E afirma também:
“Ninguém me conhece para cá do visível
E, no entanto, sei que tenho um nome,
Uma morada onde guardar a morte
Enquanto não chega o desamparo”
E reclama:
“Sou da distância que busco. Cumpro as regras
A que obedece a minha liberdade”.
Quod erat demonstrandum é da melhor água a poesia que se derrama neste “Lábio Cortado”, quiçá um livro que, em minha opinião, marcará, como referência, a nova geração poética portuguesa, independentemente do que Rui Almeida venha (ou não) a escrever ainda. E sei do que falo.
Por isto saúdo a Câmara Municipal de Águeda que distinguiu esta recolha com o prémio literário Manuel Alegre – é raro que um prémio se valide pela qualidade do que premeia. Desta feita, a obra honra o prémio como o prémio honra a obra.
Apesar de certas premiações, convenhamos não serem fáceis os caminhos que se abrem à nova geração de literatos que se perfila em Portugal, a geração que está para cá de Amadeu Baptista, de Américo Rodrigues, de Jaime Rocha, de Nave – só para citar alguns que a precederam. Portugal é um país com elevada ileteracia, onde uma após outra as editoras desaparecem na voragem das falências; onde as livrarias definham e fecham, trucidadas pelo vilipêndio das grandes superfícies comerciais que apenas acolhem o que poderosas e alarves máquinas publicitárias promovem; onde a crítica literária é inexistente, substituída pelo amiguismo e pelo “tout va bien, madame la marquise”.
Apesar de tal handicap, assistimos ao espoletar da nova vaga, ainda que por vezes miseravelmente arredada dos avatares expostos à luz e quase assassinada pelos corifeus do oficialismo e pelos mordomos da conveniência. Apesar dos silêncios e da intriga, apesar das objecções e dificuldades, vemos emergir ficcionistas, como João Rafael Dionísio e Daniel Abrunheiro, para já não falar de José Luís Peixoto, e poetas como Ruy Ventura, como Daniel Maia-Pinto e como Rui Almeida. Há que ter atenção, muita atenção, a esta literatura nova.
“Lábio Cortado”, livro de estreia de Rui Almeida (estes 61 poemas que aqui se apresentam), é obra perigosamente amadurecida: saiu sem adiposidades, sem bexigas nem sarampelos, sem doenças infantis. Veio já depurada, filtrada, filigranada, com “a rasura da escrita que não deixa vestígios”, com o “vício da suavidade”. E isso, confesso, perturba-me e assusta-me. Preferia que ela ainda tropeçasse, ainda tivesse ranho e as gengivas irritadas pela erupção dos dentes. Mas nem aconteceu assim, nem eu sou Petronius, não aceito ditaduras – de modas ou qualquer outra.
Resta-me aguardar para ver o que eventual segundo livro de Rui Almeida trará. E convidar-vos a ler este muito saboroso “Lábio Cortado” e, com ele, correr o delicioso “risco” de “projectar a voz para além do mar”.
Nuno Rebocho
Cidade da Praia, 30 de Outubro de 2009
Cidade da Praia, 30 de Outubro de 2009
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