segunda-feira, 20 de julho de 2009

Foi há 40 anos...

Alan Bean

Foi há 40 anos que o Homem chegou à Lua.


LUA

Há palavras que toda a gente conhece
que são quase comuns a todas as pessoas
Palavras propagadas através da gelada
superfície dos números e dos tempos
que nos cercam com o seu peso imaginário
de coisas construídas.

Por vezes um cadáver entre as pontes
justifica a grande evidência.

Pensemos na palavra Lua por exemplo.
Não há ninguém que não saiba o que é a Lua.
Por presença constante em todos os espaços
paralela ao ser dos seres e dos signos
de aqui até ao infinito
a olhamos de verbo a verbo.
Mas meditemos

no que efectivamente significa
— ela e o seu rumor transposto
ela e o silêncio multiplicado
da sua imagem mortal.

No fundo nada significa
A não ser pelo oculto existir do sensível
plano da luz e da penumbra
no mundo das cidades.

Está no alto é verdade emitindo ruídos
tão nítidos e negros tão débeis na distância
que houve que edificar um espectrómetro sonoro
a fim de lhe captar os arquejos
de animal pré-histórico. Está algures

num deserto da Austrália
esperando pacientemente algo de novo e vital
e o seu rosto escarlate de serpente
não é um objecto mais para o tempo da pedra
e do metal incompletos. Da sua carne
brota um falo por vezes é uma antena
para as plantas e os lagartos perpétuos.

Quantas vezes
o gélido e inquietante murmúrio das areias
se confundiu na sua brancura devastada?
Ei-lo no descampado: uma sombra uma ausência
proibida e sábia
longo e espiralado como um nervo do crâneo
como um rápido sulco fotográfico
no peito em ruínas.

Há rostos ao longe memória de hecatombes.

Não é que a Lua seja inconfessável abismo
embora tenha um corpo projectado e essencial
de vida e morte. Não falemos sequer
nos seus enquadramentos diversos
nas suas presenças repentinas, nos seus credos
ou no fugaz tecido laminar da sua
franja de esquecimento. Apenas
a palavra conta, conquanto nada ultrapasse
o exterior universo do seu Universo próprio.

E ainda
que tudo lhe faculte a impossibilidade
de estar nos outros como em si ou de ser afinal
matéria de febris prestígios
uma parede trapos velhos carnagem
não está em nada não reside em nada

ela não está em nada não rola sobre nada
que da boca não saia quer seja acto ou urina
um rasgão de tiros na noite um vidro a mais
quer seja a incontável câmara do sangue
dos olhos esmagados
das negruras com que o sopro do tempo passa

e flutue
e penetre
e comunique
e seja enfim em todo o lado o segmento infindável

da dúvida.


Nicolau Saião
in “Os objectos inquietantes” (1994)

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