Foi há 40 anos que o Homem chegou à Lua.
LUA
Há palavras que toda a gente conhece
que são quase comuns a todas as pessoas
Palavras propagadas através da gelada
superfície dos números e dos tempos
que nos cercam com o seu peso imaginário
de coisas construídas.
Por vezes um cadáver entre as pontes
justifica a grande evidência.
Pensemos na palavra Lua por exemplo.
Não há ninguém que não saiba o que é a Lua.
Por presença constante em todos os espaços
paralela ao ser dos seres e dos signos
de aqui até ao infinito
a olhamos de verbo a verbo.
Mas meditemos
no que efectivamente significa
— ela e o seu rumor transposto
ela e o silêncio multiplicado
da sua imagem mortal.
No fundo nada significa
A não ser pelo oculto existir do sensível
plano da luz e da penumbra
no mundo das cidades.
Está no alto é verdade emitindo ruídos
tão nítidos e negros tão débeis na distância
que houve que edificar um espectrómetro sonoro
a fim de lhe captar os arquejos
de animal pré-histórico. Está algures
num deserto da Austrália
esperando pacientemente algo de novo e vital
e o seu rosto escarlate de serpente
não é um objecto mais para o tempo da pedra
e do metal incompletos. Da sua carne
brota um falo por vezes é uma antena
para as plantas e os lagartos perpétuos.
Quantas vezes
o gélido e inquietante murmúrio das areias
se confundiu na sua brancura devastada?
Ei-lo no descampado: uma sombra uma ausência
proibida e sábia
longo e espiralado como um nervo do crâneo
como um rápido sulco fotográfico
no peito em ruínas.
Há rostos ao longe memória de hecatombes.
Não é que a Lua seja inconfessável abismo
embora tenha um corpo projectado e essencial
de vida e morte. Não falemos sequer
nos seus enquadramentos diversos
nas suas presenças repentinas, nos seus credos
ou no fugaz tecido laminar da sua
franja de esquecimento. Apenas
a palavra conta, conquanto nada ultrapasse
o exterior universo do seu Universo próprio.
E ainda
que tudo lhe faculte a impossibilidade
de estar nos outros como em si ou de ser afinal
matéria de febris prestígios
— uma parede trapos velhos carnagem —
não está em nada não reside em nada
— ela não está em nada não rola sobre nada
que da boca não saia quer seja acto ou urina
um rasgão de tiros na noite um vidro a mais
quer seja a incontável câmara do sangue
dos olhos esmagados
das negruras com que o sopro do tempo passa
e flutue
e penetre
e comunique
e seja enfim em todo o lado o segmento infindável
da dúvida.
Nicolau Saião
in “Os objectos inquietantes” (1994)
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