sexta-feira, 26 de junho de 2009

Os vossos poemas

Caros etéreos,
no último passatempo pedi-vos poemas sobre música. Como sabem, este passatempo foi patrocinado pelo poeta Amadeu Baptista que ofereceu 9 livros seus para os primeiros 9 participantes que enviaram poemas:

Assim sendo, os participantes mais rápidos que receberão livros são os seguintes:
Maria Paula Raposo: “Outros Domínios” Prémio Literário Florbela Espanca 2007, Edição da Câmara Municipal de Vila Viçosa, Março 2008
Mário Lisboa Duarte: “Outros Domínios” Prémio Literário Florbela Espanca 2007, Edição da Câmara Municipal de Vila Viçosa, Março 2008
Carla Ribeiro: “Outros Domínios” Prémio Literário Florbela Espanca 2007, Edição da Câmara Municipal de Vila Viçosa, Março 2008
João Tomaz Parreira: “Outros Domínios” Prémio Literário Florbela Espanca 2007, Edição da Câmara Municipal de Vila Viçosa, Março 2008
Jorge Vicente: “Outros Domínios” Prémio Literário Florbela Espanca 2007, Edição da Câmara Municipal de Vila Viçosa, Março 2008
Carlos Teixeira Luís: “O Bosque Cintilante” Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, Azeitão, Maio 2007
João Rasteiro: “O Bosque Cintilante” Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, Azeitão, Maio 2007
Vicente Ferreira da Silva: “O Bosque Cintilante” Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, Azeitão, Maio 2007
Eduardo Aleixo: “O Bosque Cintilante” Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007, Edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e de S. Simão, Azeitão, Maio 2007

Eis todos os poemas participantes, pela ordem que chegaram:

Paula Raposo
http://romasdapaula.blogspot.com

MÚSICA

Encontrei-te numa noite, por acaso,
Vagueando ali,
Ao som de uma música irreal.
Encontrei-te na madrugada,
Escutando ao longe,
As ondas do mar tão perto.

Procurei-te naquele dia,
Depois de absorver o teu olhar,
Eloquente e vibrante.
Procurei-te àquela hora tardia,
Sob um orgasmo de luz,
Para te provar o amor.

Perdi-te no espaço de um tempo,
Numa palavra não dita,
Da tua boca sem segredos.
Perdi-te por te querer tanto,
Na loucura de te encontrar,
Quando já era tarde demais.

Paula Raposo

***

Mário Lisboa Duarte
http://www.margemdarte.blogspot.com/

Esta doença que me atormenta a mente
Este chão frio, sujo, espezinhado
Esta brisa, esta morte antecipada
Esta cinza, este pó amontoado
Este estado de dor permanente
O terror de ser grito congelado
Este ser saudoso do passado.

Caronte, porteiro a cobrar entrada
E este pobre homem a cantar o fado.

Mário Lisboa Duarte


A diva da ópera
Canta mas não encanta
A puta do Ópera
Não canta mas encanta
Eu
Não canto nem encanto
E frequentemente
Penso nas duas
Para me sentir como um todo
Resplandescendo
Perfeição

Mário Lisboa Duarte

***

Carla Ribeiro
http://valedassombras.blogspot.com

Canta

Encontra-me no palácio dos sentidos,
Orquestra de vozes confusas no prelúdio do universo,
E dorme como o meu baile no embalo dos véus perdidos
Sob a música da tua voz.

Canta-me nas tuas cordas,
Como se fosses o alento que cobre o violino do meu corpo,
A contemplação do absurdo em notas de partitura,
E tece inversos no verso da voz que te sangra o grito
Em silentes melodias
Que brotam dos teus confins como flores nos véus do verde
Que se traça em Primaveras de voz adormecida.

Abre-te à pele do meu toque,
Da pedra que ainda sinto como uma canção no silêncio,
A elegia dos teus olhos na bruma da escuridão
Que te prende na penumbra de quem és dentro de mim.

E deixa-me ser o baile do teu corpo sobre o fogo,
Da terra que envolve as águas do ar que te sopra a cruz,
Unidos na quintessência de uma antiga sinfonia
Plantada em véus destroçados
De um cântico que se contempla em traços de luz
Plantada em trevas
Do crepúsculo eterno que somos nós
Na aurora do amanhã.

Canta por dentro de mim,
Meu deus de olhos amordaçados,
E eu serei voz no teu rosto de palavras distorcidas,
Loucura da tua imagem no suave desabrochar
De um hino à lucidez.

Carla Ribeiro

***

João Tomaz Parreira

http://poetasalutor.blogspot.com

ARTE MUSICAL

Debaixo dos seus dedos a água corre

Pássaros acendem raios
multicolores, sob os dedos de David

Pendem flores da mesa
na presença dos inimigos
e nos lábios os cálices
transbordam

Pastor de cordas no vento
quando os seus dedos tocam
até que à harpa regressem
os silêncios.


O MAESTRO

Ele tosse
como o último ruído
que o liga ao mundo
ele olha o silêncio, espera
de uma fonte
a música cristalina da água
Não vemos, mas ele pensa
em cada um
dos instrumentos musicais
e alonga os braços, depois os olhos e o ouvido
que seguem as mãos
do tamanho da Mão infinita.


Steinway & Sons

Três pernas do Steinway
elevam uma sinfonia
de pássaros nas veias

acima do soalho
esbeltas
pernas do Steinway

como a mulher
escutada lentamente
no seu vestido negro.

João Tomaz Parreira

***

Jorge Vicente
http://jorgevicente.blogspot.com

1.

eu digo: chamaremos as mulheres e invocaremos o sacro império do corpo. não existe pedra maior (ou mais bela) do que aquela onde dioniso se esconde, o deus entre os homens, a pedra ante a gélida raíz dos antepassados. formaremos uma roda e imitaremos o som de todos os animais. todo o poema é proibido: só a origem, a hierofania do ritual e da pele contra pele.

2.

soletraremos o som e chamaremos os dedos criadores da chuva. só a dança nos permitirá abraçar o sexo e castigar os olhos vigilantes do deus. a palavra de poder, o poema-totem é o único caminho do ventre.

3.

debaixo da chuva ou da água que precede a escrita, ficam os tambores e as fendas/rombos do silêncio. a manhã movimenta-se com o seu olhar de corvo dourado. os ritmos e as sílabas de toque ficam no escuro. o poema / som / grito inicial apenas é no amanhecer do tigre.

Jorge Vicente

***

Carlos Teixeira Luís
http://verderude.blogspot.com

Queria ser o Joey Ramone…

Queria ser o Joey Ramone aos meus catorze anos mas dois metros de altura não estava ao meu alcance.

Queria ser um pássaro multicolor mas a árvore de ramos voláteis teimava em abraçar-me sombras de paralisar voos apenas com o meu fôlego.

Queria ser o Johnny Ramone porque sabia três acordes mas não me alugavam a guitarra dos muros deitados abaixo.

Queria ser pedra, automóvel fedorento, um autocarro lento, um rosto de menina com sardas, uma tarde de calor, e saltar nos meus ténis all star.

Queria ser Dee Dee Ramone pois claro, mas disseram que era lamuriento e suave para esta tempestade rasgada de dor e uma fúria sem igual.

Queria ser motoqueiro e selvagem, nunca me barbear e nunca pentear, beber da chuva e rasgar os jeans para ver os joelhos a queimar os lamentos secos.

Queria que a minha guitarra soasse a ventos de norte e o mais que consegui foi ser expulso da cave por fazer distorção a mais.

Queria ser marginal e mal-encarado mas era incapaz de não sorrir e deixar que um soco de rugas me enrolasse a face branca.

Queria ter mais idade para parecer velho e agora sou velho e não me importava nada ser novo mas já não queria ser o Joey falecido.

Queria ser o Joey Ramone e queria ser dissolvido no ar da memória e queria ser ouvido aos gritos num velho supermercado e queria ser outro como qualquer puto e o que isso tem demais?

Carlos Teixeira Luís


Sou feito de acordes…

Sou feito de acordes
Lamento os outros
Que de pegadas são ionizados

Eu sou os acordes que canto-toco
Com todos os erros
E não apago os erros

Não pretendo
Quero aliás, dar todos os erros
Da existência
Em quanto possa.

Sou de acordes feito
A minha marca
A maré de tempo e brisa
Levará

Serei então de poeira
Memorial ou não
Como um pássaro pardal
Indistinto

Que um dia cairá
Como todos.

Sou os acordes
Vividos ou simples projecto
Esboço de pauta meio apagada

Que tempos ingénuos esses
Quando apagávamos os traços
Que tremem
E se torcem em imprecisão

Hoje não apago nada
Será o nada
Que molhará os meus acordes
Acordando-os…

Carlos Teixeira Luís


New Orleans…

Se calhar…
Qualquer dia mudo-me para esta cidade,
Alugo um apartamento em Bourbon Street,
Decadência por decadência…
Corrupção por corrupção…
A música que sai das paredes vele céus…
Já que ouço Louis Armstrong
Sempre que estou calado
E quando dobro uma esquina
Gostaria que me surpreendesse
Uma qualquer banda de Dixieland
A tocar um standard qualquer
Vá lá, podia ser St. Louis Blues ou outro blues…
Claro que isso nunca acontece,
Existe só na nossa cabeça,
No nosso imaginário…
Até porque New Orleans das lendas
Já não existe
O furacão Katrina, a corrupção,
A incompetência e o egoísmo
Trataram de tudo…
Na verdade, a New Orleans mitológica
Nunca existiu
Apenas uma mentira turística
Mas continuo com o coração virado ao Jazz ao Blues e ao humano…
Árvores centenárias e marcos de História…
E até de bourbon em poucas quantidades…
E se me mudasse para New Orleans,
Morria de saudades do fado, do cozido à portuguesa,
Do tinto de Redondo e da Lisboa caótica…
E do rosto bonito de quem é luso,
O brilho luso o meu paradoxal alimento…
Seja do Minho, da Bahia ou outra rua de terra gente…
Mas sempre ao som de dixie na sua land…
Nada mau.

Carlos Teixeira Luís

***

João Rasteiro
http://www.nocentrodoarco.blogspot.com


Variação sobre o rosto das aves
À Maria João Pires

Ela repousa as mãos sobre o piano exposto
para não ver o pássaro da infância a memoria do caos.
E viu em cima as mãos mortas. Então canícula
embrionária na força das guisas da pedra
sagrada – ela língua de eco violento.
E fechou os olhos ao timbre das pirralhas
em seu encanto de feiticeiras
e foi possuída como os outros animais verdes.
Um grão de sémen balsâmico desvendou
o enigma onde se coalha a força de acravar os dedos
até a fulguração do espanto
a máscara desmesurada da palavra e do sopro.

Se pudesse chorar o medo sob as diáfanas pedras
se pudesse arrancar o corpo
e comê-lo nos instrumentos melodiosos da ira
como Saturno alimentando-se pelo ventre
comendo seu coração de ardósia – seus filhos de voz.
Seria pelos seus dedos acesos
alumbrados nas sementes das auréolas selvagens
e pela poesia que sai indómita do canto
das aves – explosiva é a geometria do piano
e das ignitivas gárgulas primitivas.

Talvez a sílaba seja só esta perene e imperceptível
boca de sopro que se dispersa vida e morte
apontando o polegar da carne
insistentemente como cristais expelindo de lírio em lírio
e de dentro a melíflua fractura do silêncio
ascende pela música divina onde há restos de silêncio
até os corpos se apartarem dos solos noctívagos.

Ela explode luz com a euforia dos músculos
quando aquecido em seus dedos há um inventário nu
e vi os mortos, pequenos e grandes, e foram abertos os livros.

João Rasteiro

***

Vicente Ferreira da Silva

http://inatingivel.wordpress.com

Pautas

Letras
delicadamente
escolhidas
em palavras
carinhosamente
formadas
são
notas de música
apaixonadamente
sussurradas.

Pautas
de poesias
convertidas
em melodias.

Vicente Ferreira da Silva


Canto Único

talhada a cinzel,
uma lua laranja vela o horizonte.
em tal aura, refugia-se a essência desnuda
e pressente-se a indelével partitura do cosmos

no silencio transformado em paz,
onde as palavras são fábulas de paixão,
o aroma revela a melodia do profundo
que enleva a água-marinha aos nenúfares
e insufla em ternura nuvens prateadas

noites azuis,
pepitas de ouro.
como orquídeas suspensas em lagos.
estrelas pendem serenas.
nesses rastos brotam sonhos.
pelo voo do beija-flor
que solta as harpas do encanto
do jasmim insubmisso.

é em pleno desprendimento que recordo.
quando sou intermitência da consciência antiga.
e semeio-me,
breve,
no campo da noite,
às pétalas de marfim, às gotas de luz
do orvalho banhado em raios de água pura.
mimo da mãe terra.
porque as origens são cegas. somente atribuídas!

estremeço com o ritmo da tua frequência.
não por inânia, mas por rendição.
por retornar ao uno que fomos,
pelo resplendecer da íris exaltada,
pelo arquejar do corpo omnisciente
no resgate dos beijos de jade.

ah! os lábios de fogo anseiam pelo sabor
do teu travo de framboesa fresca,
que faz esse colar silvestre de esmeraldas
onde toda a lembrança se embala.
e vago, nos estilhaços das eras,
renascido pelo teu flamejar.

por fim, sinto a alma do jardim da tranquilidade
no casulo de seda que afaga as asas da luz,
em tempos do tempo sem tempo.
os tons de púrpura
e a face límpida da liturgia cósmica emergem.
a densidade é o tecido do amor
o cântico a sua expressão.

encerro a tristeza em gomos de romã.
não para a esquecer, mas para a despojar.
pois as lágrimas de sangue são vida!
é por elas que a emoção é nutrida.
é por elas que suspiro na cripta sagrada do Ser.

pelas letras que fazem a música celeste,
nas névoas da água universal do reencontro.

descansarei,
verbo no Canto Único.

Vicente Ferreira da Silva


Renascer

tudo o que desejamos ser harmonia no imenso,

sentir o vento avassalador do amor,
impedir que alguma vez a alma seja amortecida.

ah! mas o suceder é um caminho imperioso.

na vida há sempre um distanciamento do sonho,
ou uma pausa na partitura suspirada.

todavia, o horizonte deve ser alcançado.

entrega-te ao mar e ao céu!
sê na fusão do azul,

e serás música nas estrelas do amanhecer.


Vicente Ferreira da Silva

***

Eduardo Aleixo
http://ealeixo.blogspot.com

Mas toca, Vivaldi

Quantas vezes nasci?
Quantas vezes morri?
Por que países nunca vistos
Semeei o meu silêncio,
O meu olhar de espanto?
Toca, Vivaldi,
Enquanto me lembro,
Sem esforço em me lembrar,
Quantas vezes comecei a minha vida,
Olhando para o mar...
É noite.
Lisboa submerge em nevoeiro.
Nas ruas, o inferno dos motores.
Já trabalhei,
Mas só agora me apetece trabalhar:
criar um espaço de luz,
uma baía de inocência,
uma roseira de palavras intocáveis,
o sorriso da cidade a construir...
Tão longa ainda a caminhada!...
Tão distante ainda a paz!...
Tão inevitável por vezes a guerra!...
Tão difícil a batalha da sinceridade!...
Tão longe ainda a Primavera!...
Mas toca, Vivaldi...

Eduardo Aleixo

***

Maria Azenha

http://coracaoazul-mariah.blogspot.com

palácio de março

a ensaiar uma pequena onda, março,
na música tenra da chuva
quase a cair das sílabas do vento e
de pequenas lágrimas nos cumes,
ainda suspenso de uma frágil folha azul
em pequenos ramos de acácias

é das aves a primeva luz

Maria Azenha


música na vidraça do quarto

eu, minha filha, não tenho medo de morrer.
não há uma parede a separar-nos.
o mar persegue-nos
quando, sentadas
cada uma em sua lágrima,
a chuva é ponte entre nós.
observa como se abre e fecha a tarde
no comboio das aves.
na vidraça do quarto
o coração bate em bagas fortes.
é a neve a cair
na terra,
da maneira que eu gosto,

Maria Azenha

***

Beatriz Barroso

“Musicalidades”

Num movimento expressivo de ideias,
Um gesto que solto,
Uma palavra que te dou,
Um aceno feito de longe,
A carícia que meu corpo te entregou, num abraço.

Abro-me agora ao movimento,
Ao ritmo,
Ao som,
Passo a mão pela tua cabeça, num afago,
Para sustentar o imaginário,
Que te vai dar o suporte para poderes enfrentar o dia,
Com convicção.

É este o passo e o compasso que por ti faço,
O contraponto que te ofereço,
Para que teu espírito de luta prossiga,
Para que ganhes o lenitivo para a frustração que te ficou,
Daquela tarefa adiada,
Que está por cumprir,
Pois que o tempo ainda não consagrou.
Num gesto,
A ti entrego serena,
As musicalidades do meu coração.

Todos os sons, afinal, que a outros não dou.

Beatriz Barroso


“Musicalidades 2”

Se fosse uma flor,
Eu tenho a certeza que serias um Sol,
Para me manteres a cor, a graça, a vida.

Se eu fosse uma abelha,
Tenho a certeza que não te irias pôr de ré,
Seguir-me-ias como o vento,
Pronto a dar-me alento,
Para eu poder bater as asas com mais força.

Se eu fosse uma fruta madura,
Eu tinha a certeza que tu serias a minha árvore,
Resistente e sadia,
Para poderem crescer muitas como eu,
E mitigar a fome de inúmeras bocas famintas.

Se eu fosse uma estrela cintilante,
Eu tinha a certeza que tu serias o espaço sideral,
Para eu de lá, poder iluminar-te os olhos,
Suscitar a imaginação das crianças,
Fomentar a criatividade dos poetas.

Não sou uma abelha,
Não sou fruta,
Não sou uma estrela.
Sou apenas uma mulher,
Simples criatura humana,
Que te entrega o coração,
A única coisa que lhe resta,
Para poder receber a música e a verdade do teu.

E porque também não sou uma flor,
Senão teria pétalas de lindas cores abertas à tua espera,
Sem, contudo, ter dó por isso,
Abro os braços até ser capaz,
Solto com emoção, mais uma e outra vez,
Os ritmos que a minha alma,
Todos os dias por ti, gera,

Aqueles com que cadenciadamente,
Ela desperta!

Beatriz Barroso


“Musicalidades 3”

Trazem sentidos sem sentido,
vivem à espreita,
da hora que demora,
que de encontro querem feita.

Trazem sentidos vadios,
que procuram outros sentidos.
Trazem calores, calafrios,
desatinos musicais ao nosso coração

Trazem sentidos que se entregam,
com medo de se prenderem,
chegam plenos de sons maviosos,
árias completas que nos invadem, num segundo de paixão.

Trazem sentidos que chegam, que vão,
num vai - vem desencontrado,
são sentidos que deixam na boca,
apenas o sabor breve da emoção.

Trazem sentidos loucos,
sentimentos efémeros,
sugestivos cantares de sedução.

São a melhor música ligeira,
Que nos pode ser oferecida,
Pelos exímios amantes de ocasião.

Beatriz Barroso

***

Luísa Azevedo
http://pin-gente.blogspot.com

paz...

hoje vou dançar à chuva porque as nuvens convocaram-me para a dança.
vou coreografar o movimento do meu corpo com o abraço das águas que dos céus caem.
escolheria bach!
mas vou entregar-me aos sussuros do vento, aos murmúrios da brisa e aos sibilos da chuva.
deixo o meu corpo adejar ao som de uma orquestra de sopro que me embala o movimento.
perfeito!
estarei descalça para beber da terra e sentir como me sustenta o equilíbrio.
vestir-me-ei de branco para que quem olhe me saiba uma pomba em busca de paz.

Luísa Azevedo

***

Nicolau Saião

CANTATA
(a meus filhos, que sempre me rodearam de música)

Saint-Éxupery desejava
algo que se derramasse sobre o Homem
como um canto gregoriano, tão puro
como as vozes fluindo num claustro ou numa
sala abacial. Saint-Éxupery

no seu avião, entre o reflexo das estrelas
atravessando o deserto de Al-Aifa ou Djamila
sentia para além do odor do couro
persistentemente colado à sua figura
de pássaro desaparecido
na cabina que era a sua catedral
lunar e terrena
a luz das vozes como numa
manhã de Novembro: os vultos encapuçados
cruzando timbres, os tenores e os baixos
trocando o seu jogo simultaneamente
pesado e leve
que faz comunicar céu e terra
pela mesma escada sonora
(o mundo de baixo e o de cima
ligam-se pelas colcheias e semifusas)
que mais tarde iria fascinar Mozart
Haydn, Pierre-Henry, Johan Sebastian Bach.


Mas é fácil multiplicar os exemplos: José
ou Pedro, João ou António ou Gaspar, simples
cidadãos dos diferentes países dos continentes
onde a araucária ondula contra o vento
ou a oliveira tremula sob a chuva
numa vereda da montanha
num quarto ou numa sala ou pela rua
ligam serenamente um botão
distraidamente enquanto voltam as folhas dum livro
ou acendem um cigarro
e coçam um qualquer recanto do corpo
e levam copo ou chávena aos lábios
que antes murmuraram para alguém
“repara” ou “queres ouvir?”
ou simplesmente nada disseram
presos ao silêncio envolvente
da noite de Primavera
- e a grande onda salta através dos anos
singelamente
e rodeia os humildes objectos em torno
e flui delicadamente e consagra
ouvidos, olhos, mãos que repousam
subitamente serenas. O canto
cumprindo os mistérios que perpetuam
tardes e madrugadas
é junto de nós uma entidade que palpita
que ilumina como a brusca chama dum fósforo
e nos diz nos diz veladamente

os séculos e os momentos incomensuráveis.


A SCHUBERT
(à Mariana, que uma vez me disse “Essa música é bonita, avô”)

Não em Viena claro não em Lisboa
nesse edifício “tristíssimo, de pedra
acinzentada, com péssimas retretes” aonde um lieder
seria fadinho ou então habitual melopeia dum
Goethe estúpido genial companheiro de reis andando
por sítios tais que não lhe era dado compreender o génio
em translação Não em Lisboa digo ou seja em Portalegre
lugar atentamente imóvel em retratos em húmidos
quartos de casa em cozinhas onde retumbam cançonetas
onde as mãos ou melhor onde uma certa mão procura
adejante dar o mais belo travo ao arroz-doce florir
as manhãs de Grillparzer (“Algum
de vocês tem um pedaço de papel, de preferência
de música”, perguntavas tu um pouco aborrecido e infeliz
no caminho da floresta) Ou seja: não era nesses tempos possível
andar três horas a pé de bicicleta e ir até ao fim da
Rua de Lichstenthal ou até São Mamede e cantar humildemente
um trecho da “Viagem de Inverno” com o coração estalando de
amargura de desprezo como futebolista saindo dum campo em que
a luz do crepúsculo retocada a lápis ad majorem Dei gloriam
fora invadida por holofotes como luzes de cena, ou seja
ópera sem golos sem dribles junto à baliza contrária
para que possíveis fossem o solfejo sonhado o violino e outras
noções elementares provisórias para estranhos vascos gêéme
- sempre eles! - tal como Schiller fazendo o ninho atrás da
orelha a Holderlin Espertalhões que naturalmente encontram
a música como simples violeta, cruz de ouro num bolso de colete
num espaço de estrofe provavelmente interior (“Não havia
janela que não tivesse vasos com flores plantas trepadeiras
gaiolas de pássaros canoros, mas isto não era a Natureza”)
provavelmente alheio ao vento que sopra e sopra incessante
no parque do palácio Estherazy. E - amigos meus - como é negra
a água desta ribeira ou à noitinha em Cascais, lugar
onde vi pela primeira vez ao vivo essa
tal ave, assim o confirmavam Salieri ou Ruezieska como
uma história em velhos álbuns de família, século dezoito
para ali virado, Janeiro por extenso de 97. O mar
entrava pela terra dentro, passava
sob uma ponte (palácio de gente de muitas
posses, não sei se me entendem) e a melodia chegou - “Variações
para Piano” - atravessando a manhã dentro de mim como Bergier
em Bergen-Belsen criando recordando concertos de cinco
minutos deixava
a suficiente certeza naquele alto silêncio. Observando mais
atentamente as minuciosas imaginadas fotos, os pequenos
truques dos sábios - as tintas, as poções
as colcheias e as chaves por onde principiavas o mundo
sentia-se que valera bem a pena o pobre braço devastado, a anca
frágil, o suor de ternura nunca oferecido a Carolina
e a Teresa (“Lembras-te Karolin daquelas tardes no jardim
quando te revelei que todas elas te eram dedicadas?”) sendo
bem verdade que uma Estherazy ou uma Grob jamais poderiam
murmurar o doce francês muito baixinho fosse por elas mesmas
fosse pela outra voz nocturna, um pouco atroz mas sempre
o justo compasso que imaginavas, o primeiro
timbre para que algo afinal fosse esquecido
para que algo ficasse adormecido
sobre uma mesa ao lado dum jarrão “num quarto
pobre, solitário, um pouco sujo”.

II

É pois contudo assim que mais eu te amo
“pequeno, rude e mal ataviado”, ou antes sombra
difusa compondo quartetos frases sobre um aparador
de pinho nessa terra em que era possível ver
oliveiras e árvores sem nome através do ar
Goethe - sempre ele - não respondeu
demasiado em cima que estava de pequenos poemas
e outras coisas nobres velharias
e por isso Harrison descobriu como achar a longitude pouco tempo
depois nas tabernas de Viena (“Oh! Como canta o meu coração!”) as
moças trauteavam refrões viam televisão davam o tudo
um resíduo cuspido de velhos cânticos mas era ali
que ele teimava em chamar o lá, o dó, o só-lá-si
pequenas sombras pequenos vultos sobre a parede escura
- oh ! como cantava o meu coração - e os carros
passavam incessantemente
Em frente duma igreja alguns turistas fotografam-se
não há, digo eu, sinfonias incompletas, escutai
vede aqui o nosso junho e o companheiro novembro escutai
tudo tem o estrófico e o desenvolvido Cães e pombos e crianças
trauteiam sem sequer pensar durante o longo Domingo uma cantiga
breve e triste Escutai Durante minutos uma ambulância passa
foi alguém teve talvez a grande revelação
como tu se calhar “de corpo cansado e desajeitado, de olhos míopes”
Por seu turno - a chuva cai agora duramente - Beethoven percebeu
bem que em Schubert havia “uma centelha divina”, havia

provavelmente um momento como numa sala uma visita fecunda
fraternal como um Verão que se aguarda. Agora

a chuva parou em volta
do jardim sentiu-se uma pequena pausa
alguns ruídos de alguém que passa, um simulacro se quiserdes
de solenidade, uma canção
algo perdida, a melodia que alguém
ouviu pela primeira vez num quarto muito às escuras calmo
um quarto inteiramente em silêncio
como uma voz que se escoa
numa casa

vazia e abandonada.

Nicolau Saião

***

Maria Costa

XXXVII

e eu era a casa
a música do mar
uma que outra palavra_____e o abraço

Maria Costa


XXXVIII

um caminhante pela beira
outonal da água

canta de novo o amor

enquanto o tempo é tecido
à direita dos relógios

Maria Costa

***

Marcelo Torca
http:// www.marcelotorca.com

Música
Só música
Como música
Música
Excita
Exercita
Facilita
Aprendizagem de música
Tocadores de música
Conjuntos sonoros
Saborosos
Deliciosos
Valiosos
Sabemos...

... Música...
...Ah!

Marcelo Torca

***

Regina Gouveia

1
Que acordes são estes que quebram o silêncio que me invade a alma?
De onde vêm estes sons
que me transportam a outra dimensão no cosmos infinito?
Presto assai, allegro moderato, andante lento -
sinfonia que vem do alfa e vai em direcção a um ómega ignoto,
difundida por entre as estrelas, a propagar-se na matéria escura
talvez vinda dum tempo remoto,
dum tempo em que ainda não havia tempo,
talvez ainda antes da criação do mundo,
quem sabe transportada pela radiação de fundo.
Na noite calma, embala-me esta música que não identifico,
e onde, entre um tanger de cítaras e harpas, se impõe sublime, um violino
Acordo, deixo o cosmos etéreo, esfuma-se o som divino.
O som que escuto agora é bem real. Apenas um bater de coração aflito,
quem sabe, um problema de tensão arterial…


2
Sangra o silêncio na rua deserta
em que o sol agreste derrama pelo chão
um manto de sombra e de solidão.
Sentado na calçada um velho de ar triste
estende o olhar para um longe encoberto,
um olhar vago, cinzento, impreciso,
tentando enxergar, por anamnese,
algo tão longínquo que já nem existe.
Mas eis que se evade da janela aberta
a grande polonaise de Chopin.
O velho estremece e escuta atento.
Com olhar já desperto, soergue-se lento
e na face enrugada assoma um sorriso.


3
Ainda hoje não sei
se apenas o sonhei ou foi real.
A orquestra tocava a Pastoral
e eu, comovida, aplaudia.
Pareceu-me ver que estremecia
a flor que eu usava na lapela.
Creio que também ela se comovia.
Ou então seria por causa da tal da ressonância.
Sei que a minha mente era toda ela sinfonia e fragrância.
Ao allegro seguia-se o andante e mais adiante
um outro allegro, a tempestade
- Beethoven, a genialidade.
O som crescia, enchia todo o ar,
e, de repente,
um dos violinos pareceu-me ser um querubim
não sei se aquele do canto do jardim
se o outro, na capela à direita no altar.
Pareceu-me que eu estava a flutuar
e que a orquestra tocava a Pastoral só para mim.
Ainda hoje não sei se tudo isto eu sonhei
ou se foi mesmo assim tudo real.

Regina Gouveia

***

Andreia Silva

http://segredos_escondidos.blogs.sapo.pt

Ritmo

O ritmo que anda no ar
Entra-me pelo corpo dentro
E trespassa a minha pele!
Apetece-me dançar
Apetece-me mexer
Criar um reboliço
Na totalidade do meu ser…
Quero esquecer o resto
Tudo o que fica atrás da pista
Espalhar alegria pelo mundo
Aparecer numa revista…
O ritmo…
Este som…
Que não consegue escoar
É quase como um dom
Que me ofereceram
Para animar
Preciso de animação
E de uma luz brilhante
Deixar esta angústia
Um tanto ou quanto
Agoniante…

Andreia Silva

***

Nuno Rebocho


CONCERTO BARROCO

dedilho na guitarra um concerto barroco e a noite discorre
sobre a pele adormecida o planger da corda
(os sons despertam
e existes apetecida
incubando na minha carne
rumores que a alertam)

o concerto barroco despe-me de bravatas
fico sem defesas
na ilha nocturna de falar sozinho
onde me represento todas as comédias
(se ouvissem o que declamo
nas partes em que entro
actor-espectador-arrumador
quando ao palco me chamo...)

se ouvissem o concerto barroco tangido nas cordas
chicoteando a noite a pele o sossego
escutavam a esperança
que resiste ao açoite
e me fere a lembrança

mas ouvimos (tu e eu) o concerto dos dedos ágeis
a pele também desfraldada
- ao menos esta noite ficarias abrindo
as portas do teatro do pensamento
e eu
por esse gesto acreditava
que do teu tempo
roçagando a pele
chegaria o meu tempo

no concerto barroco que também ouvias
e onde me perdendo
me descobrias

Nuno Rebocho

***

José António Sousa & Silva Grilo

http://gestodaescrita3.blogspot.com/

violino

o violino chora
no ombro do músico

é um choro profundo e alegre.


sou teu

vejo-te (mesmo que não me vejas)
e imploro (mesmo que não oiças)
o teu sóbrio amor (mesmo que não saibas)

assim sou teu (mesmo que não sintas)
eternamente teu. (mesmo que já não existas).

José António Sousa & Silva Grilo

***

Sara Canelhas

(para a minha mãe)
Robert Schumann
“In Modo d’una Marcia” /piano quintet, opus 44, in E-Flat, 2nd movement

Requiem

Se na paz das algas ondas marulham sussurros de espuma
nos impávidos leitos musgos bebem dos rios sedentos.
Onde a terra não abrasa dias nem os sóis incendeia
Véus de fina amnésia acendem lumes ao vento

Já não se ouve o mocho chamar o silêncio do vale
nem o crepitar da lenha esculpir línguas de pedra.
Já não se escuta a voz dos segredos em conchas
e conchas de membros cobrem o mar de pétalas

E quando as mãos da musa acolhem a sina inquieta das liras
Apolo toca os solos de um mar na solene marcha de um rio.
E se as esferas dobrarem os cânticos em da capo pianíssimo
por eles se afina o exíguo nada no ar curvo e azul dos sinos

Sara Canelhas

***

Joaquina Oliveira
http://santitates.blogspot.com

Ser de Música

No teu ser
encontro a minha música,
os sons do meu encanto
e do meu desencanto.

No Dó a segurança
que teu abraço me dá,
no Ré a esperança
de outra vida cá.

O Mi lembra bigodes
e miados
que se misturam com o Fá
em noites de pagodes
e de fados.

Sol...
Sol és tu!
são tuas mãos
teus carinhos
teu sorriso,
teus abraços...

Lá...nas altas serras,
as penedias,
o sonho,
as magias
outros caminhos,
...o retorno,
os desenlaços...

Si, o culminar!
o ar que falta
quando se quer avançar.
a vontade de não voltar,
de estar só.
A procura
e a loucura
de um novo Dó!

No teu ser
encontro a minha música,
o renascer!

Joaquina Oliveira

***

Eusébio Tomé

Dá-me música

Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si
Um dó li tá
quem está livre, livre está
Chamava-se talvez Nini
dançava só p’ra mim
e era do melhor que há
Era música de fundo
e era bem deste mundo
Dó, ré, mi, fá
semicolcheia e solfejo
alfazema e poejo
música suave e enleio
Si, lá, sol, fá, mi, ré, dó
clave de sol, bi bemol
dança a passo de caracol
Mel, suspiros e afagos
música de fundo vaga
vaga de fundo de lava
E no fim muitos “bi quaite”
como strangeres in de naite
com muita música ciciada
E depois silêncio e nada

Eusébio Tomé

***

António Pina

http://KrystalDiVerso.blogspot.com

Notas Madrastas

Aquela nota madrasta,
Que por ti se atrai e arrasta,
Lavra branca de filhos em linha,
Cinco linhas de um olhar que basta,
Alegro marialva que de fininho definha,
Ressuscitando cada alma de nota sozinha,
Libertino triste que de ti se afasta!

Rouxinol de papel em poisos de pentagrama,
Solta pio escondido que cresce de mansinho
Trovão de elevada ode afogada na lama,
Substituída arte por arte de triste fama,
Canto lírico de tonto poeta sozinho,
Trinado falso de manhoso comezinho,
Falsa voz que o canto roubado clama!

Enteados geniais esbatidos na vaidade,
Esganiçados falsetes de opereta fugaz,
Piano mudo onde a voz jaz,
Afonia de tenores de sorte finada,
Por eles tão nobre arte desprezada!

Poalha de ouro em notas de poalha,
Poalha que baila em poalha de si,
Áudio poluto de poluta gralha,
Dó maior doído em queda nota de mi,
Forçado farfalho do fá que falha,
No só que denota notas de fado putedo,
Melodia escrava de chulo-pó traiçoeiro,
Desvanece-se lento em denso nevoeiro,
Desaparecendo na pauta rameira do enredo,
Tão misteriosa que semeou o medo!

Aquela nota madrasta,
Espreitando da noite que a toca,
É nota envergonhada e gasta,
Composição de nota pura e casta,
Alegro triste que seus filhos invoca!

António Pina

***

Ilona Bastos
http://br.geocities.com/ibbaptista/index

SAIO DE MIM, ESTOU DE PARTIDA

Com Adriana Partimpim
saio de mim
danço
solto meus passos
não descanso
sigo compassos
e vou assim
voam meu braços
prazer sem fim…

Com Norah Jones
já estou rendida
e de partida
deslizo a andar
canto se falo
ouço se calo
sorrio música
leve e acústica
flutuo no ar…

Fontes de inspiração:
"Fico assim sem você” e “Sunrise”



COM ESTA MÚSICA

Com este som
estas notas e melodia
fecho meus olhos e vou
até ao fim do mundo.
Em águas cálidas me banho
por céus imensos me perco
num arrepio de prazer.
Ninguém me prende
nada me tolhe
sou livre!

Com este som
estes acordes e vibratos
não sou mais eu o que fui
nem este solo e segundo
os mesmos de há pouco...
Tudo é paz e tranquilidade
estendem-se a meus pés planícies
abarca meu olhar mil horizontes
estou em harmonia
com o Mundo!


VIAGENS

Pela música viajo
no tempo e no espaço.

No dedilhar desta guitarra
transporto-me para a Andaluzia
refresco-me à sombra de verdes ramos
salpica-me o som cristalino de uma fonte
em alegre jorrar, num pátio sevilhano.

No repenicar saltitante desta flauta
visito as cortes da Idade Média
entrego-me às danças e aos cantos
ensaio os jogos e as graças pueris
dos jovens gentis da antiga Europa.

Neste coro que se ergue, sublime
percorro os claustros de um mosteiro,
reflicto sobre Deus e suas graças
atenta ao colorido leve das asas, a voar
por sobre as pétalas róseas do jardim.

Pela música viajo
E sou feliz assim!

Ilona Bastos

***

Soraia Martins

http://osabordoescuro.wordpress.com/

a música também dorme

foi de relance
que vi os olhos rasgados
com lágrimas de um azedo bruto
ninguém a perseguir o ar e,
sem querer,
todos querendo pedaços de qualquer coisa fora do comum
imaculada
a luz apagou-se de um ímpeto
as mãos voltaram a ser amor;
queria, a todos os milésimos de segundo,
proteger teu dorso com abraços de rainha
esquadrinhar-te a pele sem pudor
espalhar meus beijos
e sentir-me viva em nós,
como sempre faço,
a música voltou-me
sentou-se ao meu lado
no sofá velho
e acariciou-me o coração
com acordes de choro desafortunado na alma
e melodias na pele
saciou-me
queimou-me a ansiedade
quis ser céu
porque a música também dorme

Soraia Martins


à queima-roupa

chorei com os dedos dos pés
pelo fogo que fica da música
por cada acorde
por emoções soletradas em notas
que transcendem o possível,
deixei-me ficar
serena
sem melodia nos olhos
ou o sabor que resta da voz,
encostei-me ao mar
gritei-lhe o suor das ondas
marquei cada travo de espuma
a ferro queimado
preso nas máscaras de sal
ruído demente
de mel na água
a lume brando
nos sonhos, teus
e meus, de tanto te querer os braços
e de te cegar a pele
em laivos de redenção,
num bruaá
em voz muito tremida
de menina

Soraia Martins

***

Gabriela Rocha Martins
http://cantochao.blogspot.com

- o tango

as mãos do homem
infinita
mente
triste avançam e
fecham.se
um trejeito canalha afivela.se.lhe ao rosto
um afecto inusitado veste a mulher
concebida até às raízes da espuma
o rodopio da dança remete.os
devagar
à pureza do momento
único

a criação

o homem percorre a mulher com
os dedos apavorados de estrelas e
retém.se na respiração quente que
os passos ceifam
há um ardor que bate a ausência

a dança

os corpos vergam.se ao sabor do ritmo
no sentido do coração das coisas
perfeitas
agitam.se ao compasso e
as pontas dos pés distendem.se ao encontro
os corpos vibram
os acordes intensificam.se no
estremecimento precoce do acordeão

perfeito

a mulher vacila no desentranhar dos sonhos
selados em suas mãos
o homem murmura.lhe
Astor Piazzolla
a mulher solta.se à intimidade absoluta

sem rodeios

há um pássaro que se move
que se apaga na melodia sem rosto e
sem imagens
voa ao encontro dos corpos
pousa sobre a cabeça da mulher
desce para o ombro
as mãos do homem abrem.se ao
ritmo lento dos dedos
perdem.se

habituados ao silêncio

Gabriela Rocha Martins

***

J. Caldas

A música entra em mim e desperta-me
Vem de longe onde nascem todos os silêncios
Os que gritam aos ouvidos que existimos
E nos mergulham na calma das montanhas
E no imenso lago onde se precipitam os riachos
E onde as melodias dançam na superfície que ondula.

Passeio pelos caminhos onde escuto segredos
Ressoam timbres distantes que agitam
Uma saudade cresce indefinível vaga
A música cresce e caminhamos em frente
O olhar não hesita os passos são firmes
Ao longe o chamamento das melodias que cativam.

A música que me incendeia os ouvidos
Provém das searas e das papoilas vermelhas
Dos pássaros que cantam dos ralos das sombras
A eternidade que vibra a irradiar dos campos
O concerto da Terra na grande festa do Universo.

J. Caldas

***

Maria Helena Cabral

Soneto Musical

Estão nos versos horizontais
Do meu soneto cadenciado
Pautas paralelas, nada mais,
Onde deixo o meu ser, musicado.

E o azul do Céu fica riscado,
Entre postes da luz nos caminhos.
Com seu chilreio orquestrado,
Pousam nos fios doces passarinhos.

E a água do mar ao beijar a areia
Volta bem longe o Céu procurar.
Traz sons do universo em melodia.

E o mar vai, vem e volteia,
Ouvem-se harpas de anjos a tocar
E fica na Terra um mar de Alegria.

Maria Helena Cabral

***

Ricardo Silva Reis
http://www.manhasdeinverno.blogspot.com

Sonho-te numa melodia

Cala-se o dia nos primeiros acordes da madrugada.

Nos teus cabelos dedilho cordas numa harpa inventada,
Nos teus olhos leio pautas de melodias carregadas de saudade,
Dos teus lábios soltam-se versos com sons de ilusão.

Cala-se a ausência numa música a falar de sonhos…

Ricardo Silva Reis

***

Myriam Jubilot de Carvalho
http://www.myriamdecarvalho.com

O canto das cigarras

Para a cigarra é sempre Verão,
um breve desespero
em forma de canção:

– Passam as formigas, interesseiras,
as abelhas, trabalhadeiras,
E cigarra alguma entende
quanto vê,
nem o porquê

de tamanhas canseiras...
Quem nasceu para cantar
agarra o Verão às mãos ambas
E para que todos o vejam
ergue-o acima do chão

Que importa
o falatório persecutório das formigas,
o finório palratório das abelhas –
Se o meu canto
dá mais azul ao céu,
Um verde mais esquisito aos alfarrobeirões,
– Faz mais esfuziante o fulgor do sol –
E deixa mais anões os ralos e as rãs?

A Ribeira secou. É Verão, não pode correr...
Mas lá vem o desespero esbraseado das cigarras
que não a deixam morrer

Myriam Jubilot de Carvalho

***

Mário Bruno Cruz

http://elblogdeadelleh.blogspot.com

Stacatto

As notas sucedem-se
abrimos um espaço
entre elas
e a música flui
a tentar perceber
que intervalos há
no tempo que preenche
este lugar.


Parede sonora

Música num compasso
curto que
executamos com clareza
e ao fazê-lo
revelamos
o som
para o imobilizar.


Nocturno com vozes

Ouve-se a música
das palavras
a rasgar a escuridão
o rumor de vozes
na noite que as cobre
à espera de um fim.

Mário Bruno Cruz

***

Raquel Lacerda
http://asinhasdefrango.blogspot.com

Poderia cantar-te,
mas o doce tom da saudade com que me escutas,
vale mais que mil notas afinadas

Raquel Lacerda

***

Sara Canelhas

(vendo e ouvindo)
György Ligeti - Poème Symphonique For 100 Metronomes

Quando nas vidraças pedras de gelo
sacodem o sono das janelas
cem aplausos tocam poemas
às tempestades do bom tempo.

Quando no ventre da música batem
cem chaves erráticas num andamento
crescem os tiques cem toques nas faces
ponteiros de relógio só marcam o tempo

Quando os andantes são cavaleiros
e o ritmo dos rastos os desalinham
carpem nas pedras os seus tormentos
estrelas caídas já não iluminam

Sara Canelhas

***

O mote deste passatempo era a música, e, de entre os poemas participantes, o poeta Amadeu Baptista escolheu um para integrar uma antologia de poesia sobre música que está a organizar.
O poema escolhido foi o de Nicolau Saião, que aqui vos deixo, também gravado em áudio, na voz de Luís Gaspar:

CANTATA
(a meus filhos, que sempre me rodearam de música)

Saint-Éxupery desejava
algo que se derramasse sobre o Homem
como um canto gregoriano, tão puro
como as vozes fluindo num claustro ou numa
sala abacial. Saint-Éxupery

no seu avião, entre o reflexo das estrelas
atravessando o deserto de Al-Aifa ou Djamila
sentia para além do odor do couro
persistentemente colado à sua figura
de pássaro desaparecido
na cabina que era a sua catedral
lunar e terrena
a luz das vozes como numa
manhã de Novembro: os vultos encapuçados
cruzando timbres, os tenores e os baixos
trocando o seu jogo simultaneamente
pesado e leve
que faz comunicar céu e terra
pela mesma escada sonora
(o mundo de baixo e o de cima
ligam-se pelas colcheias e semifusas)
que mais tarde iria fascinar Mozart
Haydn, Pierre-Henry, Johan Sebastian Bach.


Mas é fácil multiplicar os exemplos: José
ou Pedro, João ou António ou Gaspar, simples
cidadãos dos diferentes países dos continentes
onde a araucária ondula contra o vento
ou a oliveira tremula sob a chuva
numa vereda da montanha
num quarto ou numa sala ou pela rua
ligam serenamente um botão
distraidamente enquanto voltam as folhas dum livro
ou acendem um cigarro
e coçam um qualquer recanto do corpo
e levam copo ou chávena aos lábios
que antes murmuraram para alguém
“repara” ou “queres ouvir?”
ou simplesmente nada disseram
presos ao silêncio envolvente
da noite de Primavera
- e a grande onda salta através dos anos
singelamente
e rodeia os humildes objectos em torno
e flui delicadamente e consagra
ouvidos, olhos, mãos que repousam
subitamente serenas. O canto
cumprindo os mistérios que perpetuam
tardes e madrugadas
é junto de nós uma entidade que palpita
que ilumina como a brusca chama dum fósforo
e nos diz nos diz veladamente

os séculos e os momentos incomensuráveis.

Nicolau Saião



Obrigada a todos pela participação, obrigada ao Amadeu Baptista pelos livros, obrigada ao Luís Gaspar pela gravação audio.
E... até ao próximo passatempo!

4 comentários:

pin gente disse...

obrigada!
parabéns a todos... todos!
voltarei para ker, um a um.
beijos
luísa

Menina Marota disse...

Uma tarefe árdua a tua e com o altruísmo de quem tem os sentimentos à flor da pele...

Grata por esta imensa partilha e parabéns a todos, mas em especial ao ganhador.

Um abraço carinhoso e bom fim de semana ;)))

R.L. disse...

que bom dançar ao som destes poemas...

Paula Raposo disse...

Que bonito!! Adorei ser presente. Obrigada pelo livro que receberei com muita Amizade. Beijos para todos os que escrevem com alma.