Arado
A. M. Pires Cabral
88 páginas
IRMÃ COTOVIA
I
Vive rente ao solo e é no solo
que faz o ninho e sacia a fome
com as coisas do chão e em silêncio.
Porém, quando precisa de cantar,
muda de elemento: deixa a terra, sobe ao ar,
altíssimo, até onde
nenhum outro pássaro se arrisca.
Dir-se-ia
que sobe a um palco.
Então, dos limites do voo, quase imóvel,
vai derramando breves, repetidos
jorros de júbilo, assim como quem diz:
vejam como estou alto, sustentada
por tão frágeis asas.
Depois que desafogou o peito
das inadiáveis premências da voz,
apeia-se, torna ao solo,
dissimula-se na cor parda da terra,
como se nunca tivesse voado.
Aluimentos
Bénédicte Houart
80 páginas
o meu carteiro, adoro-o
se me traz facturas saldos bancários
zero na conta a ordem
menos que zero na conta a prazo
poupanças nada e
crédito disparando
faz várias perninhas ali mesmo
no átrio em cima do tapete
desculpando-se com habilidades várias
de modo que eu
ansiosa pelo seu toque
visto-me como quem não quer, mas quero
e peço-lhe mordiscando-lhe a orelha: por obséquio
mais papelada amanhã
dessa que me agiganta até
transformar-me em nada
onde nos desencontraremos
Do Princípio
Pedro Braga Falcão
124 páginas
X
A sinceridade dessa gata,
de um tigrado quase infinito,
delicada como alegre jogo
de crianças adormecidas,
lembra-me, à tarde,
quando ouço pianistas,
uma única varanda
e uma única janela.
Como solstícios de inferno
o repuxo abre-se em luz.
Tomara o canto fosse nosso
sem searas e sem ciprestes.
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