sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Os vossos poemas

Caríssimos etéreos,
O passatempo sobre o vinho foi muito participado. E bem participado, como se pode ver. Desta vez, para a escolha do poema que iria ser gravado em audio, optei por uma solução diferente da habitual: seleccionei dois poemas de autores que nunca publicaram (um deles — o cartunista Álvaro Santos —, penso que esta é a sua primeira experiência em poesia, o que muito me alegra, pois um dos objectivos deste blogue é trazer mais adeptos para a Poesia). Além disso, estes dois poemas que escolhi são bastantes originais e divertidos, o que é óptimo para começar um Ano Novo.
Não se esqueçam de que este "espaço aberto" é um espaço de tertúlia e não de alguma espécie de competição. Para isso existem os concursos literários, com júris e prémios monetários. O poema (ou poemas) que escolho para serem gravados em audio não têm necessariamente de ser os "melhores". Como entenderão, é impossível o Luís Gaspar gravar em audio todos os poemas participantes, pelo que tenho sempre que escolher apenas um ou dois.
A vossa participação nestes passatempos deve ser sempre na óptica da partilha, da sã convivência. E até para divulgarem o que escrevem. Por isso vos agradeço a forma como têm participado nestes passatempos.
Uma nota também de agradecimento ao Luís Gaspar, que tão bem nos soube servir estes "nectares" que gravou, para nosso deleite. Sei que ele também se divertiu a gravá-los.
Aqui ficam, então, todos os poemas que chegaram ao porosidade. E no final, os poemas que foram escolhidos para gravação em audio.
Obrigada a todos, Bom Ano e... até ao próximo passatempo etéreo.


Luís Graça:


Bacchanalibus

As bacantes têm ânforas de vinho no lugar do sexo
e bebem-se de luxúrias com olhos de fogo
fervendo as entranhas deslavadas em tornados

Ao entardecer desfloram o ser das uvas
com línguas ansiosas por trilhar o mosto
de um par de seios com cabeça de fauno

Sacerdotisas de Baco e do prazer
incendeiam de olhares o transe da noite
com poemas subversivos que falam de florestas

Vestem as almas com peles de tigre e de pantera
fachos acesos nas vulvas indomadas
o vinho a escorrer nas suas bocas

Gritam “Evoé” em honra de Euhan
embriagadas pela fúria dos mistérios
sabem a fêmeas e lascívias sortidas

Têm corpos de hera, parra e tirso
desgrenhadas, ululantes, feras em cio
louvando o filho de Zeus e Sémele

Oferecem os seus torsos ao touro
Liber da fertilidade
Grande Empalador do delírio místico

Uvas e vinho são vates da orgia
assim se bastem as bacantes
no saciar lúbrico das ânsias


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Paula Raposo:


O Vinho

Aos primeiros tragos
O vinho amacia as palavras,
Depois
Perturba o pensamento
E convoca
Alucinantes desvarios
Tornando ásperas
As vozes
E confinando a tristeza
A um desperdício.

Um dia o vinho
Clarificará
A metamorfose de mim,
Quando eu o souber
Apreciar
Em todo o seu esplendor
E adocicará
Toda a melancolia
Da saudade.


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Luís Lima:


do vinho que a sangria tem e do sangue também


Jarro de sangria
quase vazio
Sem asa e com azia
na Ásia
Jarro de sangue
de meninas chinesas
Jarro de dor
ardor
Timor
Temor da guerra
Tremor de lágrimas
na água
na terra
do jarro
jarro de sal
no Sudão
na mão de um anão
um canhão
em Braga
artilharia em Praga
Duas raparigas riem
a estudar na tasca
Nos lábios delas
rubros
a sangria
de um jarro vazio
jarro de leite
deleita
na boca preta
de petróleo
um piloto
depois da queda
na areia
do deserto aberto
um oásis de barro
em forma de jarro
retira
reitera
a terra
do astronauta
do cosmonauta
Jarro de estrelas
Jarro de suor
Jarro de sangria
num só dia
À hora de jantar
um jarro televisivo
jarro de fumo
jarro de fome
nos olhos de um condutor
um camião
Jarro de alcatrão
Jarro no chão
quebrado
Jarro de segurança
na boca aberta do piloto
na tenda desfeita do verão
na cama de um beduíno
ainda menino
Jarro de água fria
fresca
Loira como um camelo
a juba das meninas
de Praga e de Braga
entrança-se
e dança
Enquanto a criança descansa
o piloto aterra
e o anão
não
Jarro de saliva
na boca do ministro
sinistro
canastro
cadastro
Jarro de mentira
nos olhos safira
dos colegas
dos amigos
olvidos
Jarro de orelhas
levado pelas abelhas
para recolher o mel
transformado em fel
Filho de Israel
jarro de artilharia
em fogo por um dia
Jarro de alegria
numa noite de silêncio
onde os néons cintilam
Jarro de maré
aos teus pés
No vestido curto
Azul
ausente
jarro de desejo
numa noite sem fim
de lonjura
que esconjura
todos os cosmonautas
que se juntam aos humanautas
todos os trogloditas
que se juntam aos separatistas
quando os argonautas
se juntam aos sauditas
jarro de areia
Na cauda de uma sereia
seria
Jarro de sangria
que bebo neste dia


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Adauto Suannes:


Vinhas tu da vinha,
alquebrada e triste,
nem mesmo sorriste,
quando me fitaste.

Vendo-te sozinha,
tentei um contato,
nem sorri, de fato,
quando me miraste.

“O que te aporrinha?
Que tristeza é essa?
Aonde vais com pressa?
Diga lá, mocinha.”

E o semblante azedo,
ar aborrecido.
Que teria havido?
Estará com medo?

Não me importa a uva,
o vinho é que importa.
Se a casa tem porta,
fuja-se da chuva.

“Cale-se” me dizes,
com ar arrogante,
e um jeito pedante.
Imitas atrizes.

Essa não és tu.
Te conheço bem,
deixa de desdém.
Tomemos um cru.

Tu bebes, pressinto.
A vida é tão curta,
então, vamos, curta
um copo de tinto.

Brindemos a vida,
com taças de vinho,
talvez um beijinho
antes da partida.

Pra que não apanhes
tu um resfriado
aceita um bocado
deste meu champanhe.

Já vejo um sorriso
surgir-te no rosto.
Foi-se o teu desgosto,
voltou-te o juízo.

Não sou adivinho,
sei que voltaria
a velha alegria,
graças ao bom vinho.


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Luís Brito Pedroso:


Spiel mit mir

Sorrir, ao levemente amanhecer
Bebo o vinho e torno-me um menino
capaz de amar uma coisa qualquer
Um menino indivisível
O senhor seguro do seu sonho

O sorriso ao mansamente adormecer
se souber que consigo sonhar que me amas
Eu amo-te
Durmo como um menino


* * *


Durmo

Durmo de mão caída junto ao copo
no fundo inconsciente da note
Luzes brancas desenham
um sorrir de desespero
Há alguém que me adormece
bêbado ao encontro de toda a consciência
E o vinho é uma pergunta, resposta que dura
no mundo morno dos braços da ausência
Sonho que o meu corpo rodeia a tua figura
e atravesso a noite da música
Ando à minha procura
Ando à tua procura


* * *


Vindima

Aniquilar a linha de chuva era um ofício
Passar sobre a margem coisas sem alma
Leves

És apenas alguém que passa
mas não me é leve o teu olhar
Ergo a mão acaricio a vinha
Parece-me que a solução está encontrada

Serei Ulisses embriagado
Descansando e lendo poemas


* * *


Não enveredo pela cinefilia
Alquimia ou crítica de arte
Nem pela genética ou física atómica
Dedico-me ao jornal desportivo
À alheira e ao vinho tinto
Refugio-me numa tremenda lareira de pedra
e isto chega-me para filosofia


* * *


Vidro e Barro

Num local fresco e escuro
a garrafa está deitada há décadas esperando a festa
O desrolhar

Tanto tempo ardeu enquanto esperava o regresso
e planeava a reencarnação
A escrita furiosa de um diário

A garrafa é rodada de tempos a tempos
Os duendes mortos no seu interior
murmuram o químico por exalar

Perguntei aos sábios onde estariam
os precipícios do mar, as fronteiras dos homens
Disseram-me que ainda ninguém sonhara ver o fundo à garrafa


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Joaquim Evónio:



já estás

copos tilintavam
garrafas pululavam
o vinho era bom
depois chegou a cirrose
só mais uma convidada


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Mário Bruno Cruz:



A Boémia antes do Dia

A boémia vivida hoje
é a boémia de Sócrates
que numa noite
no fim disse uma frase
apesar de ébrio
prosseguiu com o vinho
e voltou a falar depois de beber
Venceu aquele debate
apesar do álcool apesar de nada saber
apenas saber beber.


Nota do Autor: Este poema refere-se exclusivamente ao Banquete de Platão no qual participa Sócrates, ateniense e filósofo, e aos factos relatados nesse Diálogo de Platão.

* * *


Ensaio sobre o Movimento

O corpo balança
constrói uma dança
no alcatrão cai e levanta-se
preenchido pelo vinho
não precisa de chorar
mais um passo e ainda é capaz de andar.


* * *


A Baco

As bacantes encantavam Nietzsche
Dioniso protegia-as
como conhecer a desordem do mundo
o total esquecimento de si mesmo
perder o pé
e num copo de vinho
ver o mundo tal qual ele é.


* * *


A Uva

Da uva pisada pela vida
a vida vive do vinho
alegria nos momentos
em que esquecemos o tempo
e na madrugada
brindamos ao novo amanhecer
esse que jamais vamos esquecer.



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Gabriela Rocha Martins:




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José Miguel de Oliveira:


Do outro lado da mesa um copo ergue-se.
No fundo mais circunspecto de uma vida
nenhum licor.

Esta obra ao negro.
Pássaro debicando as elipses anárquicas do pão
fórmula geométrica imperfeita da obra original
como as mãos que cumprem a sua tarefa no tempo.

O pão do trabalho ali deixado no esquecimento
Sempre o trabalho e a tarefa dele próprio
o pão no cesto ali pensado para depois
um copo vazio, esta obra ao negro.

Pudesse eu pensar a vida como uma espiral
combustão do silêncio contido na garganta
carrossel de palavras no sonho das cabeças pendidas
e a luz informulada pelo desejo de escuridão.

Pudesse eu pensar a natureza simples de cada coisa.
Pensar uma árvore por dentro, debaixo uma casa abrigada do sol
Uma toalha dentro da casa, a superfície maciça da madeira por baixo
duas cadeiras - o mesmo chão.

O pão e o vinho derramado sobre a mesa.
A minha tarefa no tempo - esta obra ao negro
nenhum licor.


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Julião Bernardes:


Do vinho quando corre
homenagem aos meus conterrâneos, de Lapas

I
Envelheço nos braços p’las sementes
Que mergulho na enxada, nos arados,
A desbravar o ventre nas entranhas
Revolvendo inquietudes, desboroando
Estes secos torrões que a chuva molha
Enquanto em suor o rosto transfigura.

II
Mas as horas são largas e a energia
Como que não se esgota, permanece
Um não saber dar voz à voz que clama,
Solitária garganta estremecendo
Na desmedida sede da ignorância
Pulsando a intervalos,
Desnudando o silêncio entre as sombras.

Então grita na espuma e burbureja
Um lamento de brasas insubmissas,
Um palpitar de tempos, de alegrias,
De espaços entre os corpos e de abismos
Por onde a sede sobe e se dissolve
Entre névoas de azul!...

Vem beijar-nos no co(r)po as ilusões
E levar-nos ao centro só tocado
Por quem se reencontra no beber
A redimir em náuseas as fraquezas.

III
Já não sei se fui eu — quem mais seria?! —
Que dos troncos das vestes fez raízes
E as mergulhou na terra. Ou foi Zeus?!,
Num êxtase de amor, como relâmpago,
Que deu vida a Dioniso, o mesmo Baco
Em ânsias desmedidas desvendando
O sentido da vida e do destino,
Nessas noites de líquidas visões
Do sagrado emergindo.




Esse vinho a meus pés amadurece,
Vermelho como o sangue mas com espuma
Cheiro e sabor inigualáveis
E vai da mão à boca em oferenda,
A mesma da vindima, sobre as parras,
Com carinho de amante, pai, irmão,
Os bagos a vibrar na existência,
Esses beijos de sol que a vida abraça.

IV
Será sempre vermelho o sacrifício
Nos altares a que a vida nos amarra!...
Só quem o vê crescer por sob os pés
Lhe saboreia o travo, na distância
A encurtar as horas siderais…

V
Transportá-lo p’ra fora dos limites
Da terra onde nascer, é corrompê-lo,
É alterar-lhe o rosto e a lucidez
Só dados ao lugar onde fecunda
Naturais comunhões, gestos, sorrisos.

Mas disso apenas sabem os que o colhem
E lhe bebem o sumo, respeitosos,
Mais entregues à vida que a vivê-la.

1997


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Pedro S. Martins :


O corpo bate com a porta
Deixando-te sozinha a despertar de
Uma noite que ainda não devia ter acontecido. Viste
Fatos de cabras dançantes, montanhas sentadas numa cordilheira
Tudo,
Encaixilhado com arte e pendurado na parede lateral da
Tua pobre existência ébria

Agasalhas fígado e rins com roupas tecidas
Por um Baco ensinado por ti. Trocas a sobriedade
Por borrões de esquecimento onde te dói mais. Vives,
Vais vivendo, (viverás?) em banho-maria
Roubas identidades a quem julgas melhor que a tua
Versão original.

Eu,
Do lado sóbrio da vida,
Ainda te consigo ouvir sussurrar palavras cambaleantes com o copo a fazer de barragem entre os lábios:
«O meu problema é o vinho»
Enquanto pensavas:
»O vinho é a solução para o meu problema»
Enquanto eu sentia:
«O teu problema era uma divisão dos dias por zero»


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Leonardo Luz:



Doce olhar

foi o vinho meu amor
que me trouxe de novo aquele olhar
que no meio do tilintar
dos corações eternos e esquecidos
me perdi loucamente, provando
a tua boca cor de carmim
em ti, entrei devagar
toquei o copo, olhar macio
redondo paladar que sempre e por acaso
lembrava o vento
no dia em que partiste

foi assim, inteiro que permaneci
o copo de pé partido
a mesa imóvel lugar de apoio, antes
a paixões flutuantes e agora preso
ao doce agarrar dos teus lábios


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Eusébio Tomé:


Adeus Carrascão do Povo

Bebo desde rapaz como era uso
hoje sou um velho com memória
e ainda que do vinho já não abuse
vou-vos aqui contar uma sua história

O vinho era bebido em tabernas
escorropichado todo de uma vez
até um homem se aguentar nas pernas
e servido em copos de dois ou três

Jorrava da torneira do tonel
carrascão, com suave melodia
e girava pelas mesas a granel
solene, como em sagrada liturgia

Hoje, Deus meu, triste desgraça
bebe-se o vinho de fugida ao balcão
em "penáltis" ou em baças "taças"
vertido de horríveis caixas de cartão

Vai longe o tango e a coladera
o fado modernizou-se e veio o rock
as vindimas manuais são d'outra era
e as cubas são hoje em aço inox

Das barricas, das pipas, dos lagares
resta agora apenas a ilusão
e nos lugares de venda singulares
não se lobriga sequer um garrafão

O vinho era coisa d'agricultores
que eram ainda chamados vinhateiros
hoje foi arrebanhado por doutores,
por enólogos tecnocratas e banqueiros

Adeus Torres Vedras, adeus Cartaxo
o grande Camilo Alves ainda ecoa
esse tempo morreu, foi-se abaixo
vencido pelo Esporão e pela Bacalhoa

Morreu assim o vinho carrascão!...
Os velhos ficam-se agora pelos martinis
a cerveja é a nova rainha do pifão
e a populaça embebeda-se com "minis"


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Jorge Castro:


Elogio ao vinho, à vida
a Francisco Torres, companheiro de lides nos blogs

uvas
rubras
brancas
verdes
sangue da terra e suor
cachos de uvas
tantas vezes
outro nome para a dor

frágeis
expostas
ridentes
ao rés do chão
nas latadas
rubras
brancas
maceradas de geadas e calor
uvas franjadas de seda
parras verdes cuja cor
se mancha de ouro e cansaço
por Setembro e por amor

uvas despidas de frio
engavinhadas na vida
néctar da nossa mesa
por lágrimas
e alegrias
e seguras incertezas
árduos cachos de labor
sangue da terra lavrada
seiva da terra exangue
e suor
tanto suor...

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Raquel Lacerda:


Sobre a mesa
derramava olhares
vítreos, embevecidos.
Seu corpo lembrava um cacho de uva invertido
nas suas saias que dançavam ao ritmo dos rubores,
na face que teimava em queimar, de amores.
Sobre a mesa
se sentava
escutando todos.
Os cabelos eram vermelhos escuros,
da sua boca entreaberta, corriam palavras,
desajeitadas, enquanto ostentava o cálice.
Sobre a mesa,
ela se deitou,
sobre a mesa,
ela desmaiou.

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J. Caldas:


No frenesim das ruas em festa o vinho escorre
A música está alta e os copos brindam
Corpos bailam na cor quente a escorrer nos lábios
A leve embriaguez dos apaixonados

No segredo dos palácios o vinho é emoção
E no rodopiar de volúpia dos que riem
Um hálito que é perfume uma carícia que é húmida
Dançam os copos e os corpos e o desejo

Na solidão fria dum recanto perdido no mundo
Um olhar reconforta-se naquele copo cheio a irradiar luz
As mãos acarinham os lábios afagam
A viagem começa os olhos fecham-se e divagam

Num tempo longínquo numa ceia sagrada
O vinho foi o Ser todo que se ofereceu
Foi sangue e vida foi divindade
Um cálice erguido e o mundo aos pés.


* * *


O caminho é estreito mas o mundo vasto
E os passos são gigantes a cavalgar a euforia
Das estrelas ainda verte o nectar dos deuses
Nas gargantas ainda escorre o vinho que enleva

O olhar baila à velocidade do mundo
Campos semeados de garrafas coloridas
Nelas a seiva o elixir a vida
O delírio é a relva crescer do vinho e ser leito

E a paixão desenfreada explode domina
A sede é muita a relva cresce e o desejo
E rebola-se pela relva num abraço descontrolado
E parte com a garganta a vomitar poemas.


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Vítor Oliveira Jorge:

Vinho

Há dias em que o céu adquire
A cor e a textura do vinho.
São dias abençoados:
As gargantas abrem-se para cima
Viram-se todas como flores abertas para cima
E não podem falar, continuar a encher de ruído
O já tão excessivo ruído deste mundo embriagado.

Há dias em que são como um copo de vinho
Não pousado, mas batido na mesa como uma carta de jogo.
Uma carta violeta, violenta como o corpo de uma mulher
Vestido de veludo, e segurando a cabeça no braço.

Mesmo quem usa pistola, mesmo quem sua
E cheira a cavalo, mesmo quem faz gala de ter um pénis,
Se encolhe, e treme: vinho, vinho muito raro, muito vulcânico
Côa de repente a totalidade das cortinas. E não se ouve nada.

Um copo cheio coloca-se sobre a cara,
No lugar do nariz. Como uma vulva enorme, como
Uma lua. E exige: bebe. Bebe a cor do vinho, esta tinta,
Este sabor tramado. E as pessoas voltam a ser meninos.

Toca a beber, ao ritmo dos tambores. Toca a abrir as gargantas
Como as figuras de guernica. Toca a fazer silêncio total.
A deixar ouvir o deslizar dos líquidos, o seu boiar
Primordial. A mulher vai entrar na taberna.

A mulher das unhas dos pés compridas como espadas,
Como ganchos que se debruçam sobre a carne, e ordenam:
Bebe este sangue, engole de um só travo a cor.

E tu bebes, como criança. E ela sai da sala
Fazendo um ruído metálico com as unhas no chão,
Arrastando o veludo. E levando o copo da tua vida na mão,
Poderosa. Dirigindo-se de costas sabe deus para onde.


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E agora, os poemas que escolhi para ouvirmos em audio (pelo Luís Gaspar):


Eusébio Tomé:

Ah! Se todos fossem como o avô...

Quando penso em vinho penso no avô
homem do campo arrostando com o sol
parcimonioso, assim como eu sou
afoito na vida e moderado c'o briol

Apenas bebia em ocasiões particulares
ao matar de bicho matinal
ao chegar cedo aos pomares
a meio da manhã, nalgum pinhal

Bebia bem ao almoço, lá p'rás treze
à tarde nem tanto, nada disso
só para matar a sede, várias vezes
e outras com uns nacos de chouriço

De regresso ao lar nada de excessos
Uma breve paragem na taberna
sorvendo de passagem dois canecos
e ala que se faz tarde pela berma

Na ceia farta - janta de trabalhador
permitia-se uma certa relaxação
comia bem, quase com amor
e despejava à vontade meio garrafão

Depois falava e era eloquente
Lembrando que o vinho era dádiva de Deus
sorvia um copinho de aguardente
e vituperava bêbados e ateus

Por fim ia recuperar de toda a canseira
ternamente à avó dando a mão
sabendo consolado que à cabeceira
repousava bem cheio um canjirão

Ah!, se todos fossem como o avô...
cumpria-se o velho desígnio da Nação
embora doendo a quem calhou
matava-se bem a fome a um milhão

Eusébio Tomé




* * *


Álvaro Santos:


O Binho


Acordei
e alebantei-me.

Coxei-me.

Procurei
as chabes...

Encontrei.
Meti-as
à porta.

Em caja
entrei.

Na cojinha
o bagaxo
Busquei.

Olhei à bolta,
não encontrei.

Oubi a garrafa
tombar
no roupeiro.

AH!
Ao quarto
rumei.

E cuidadojamente
entrei.

Não hoube
berreiro.
Estranhei...

A Maria
taba
no xubeiro.

Ah, prontos,
lá xeguei.

Reparei
num pó axim branco no ar...
Huumm...

Neboeiro?

Abri
O roupeiro

Uma mão
paxa-me o bagaxo.
Era o padeiro.

Xaí de caja,
pelas escadas
rebolei.

Boltei
para a rua.
Jiguejaguei.

À porta da padaria
numa cuscubilheira
esbarrei.

Bai
Bar
Da
Mer
Da!
Recomendei.

A padaria
contornei.

Às boltas,
às trajeiras
lá xeguei.

À janela
de xima
um calhau
atirei.

No bidro
nem xei como
lá axertei.

A padeira
à janela
bei.

Abriu
as portadas
e me biu.

No peitoril
entre os bajos
poujou
xenxual
o xeu xeio.

E xorriu.

Tens o bagaxo?
Perguntou ela.

Tenho xim.
Respondi.

Atão xobe, porra!
Dixe ela.

E xubi.


Álvaro Santos

5 comentários:

Paula Raposo disse...

Eu adoro estes passatempos!!! Beijinhos, bom fim de semana.

Vostradong disse...

Espectáculo!
A leitura está porreira, apesar de um engano ("puxa-me o bagaxo" em vez de "paxa-me o bagaxo"...)
Muito boa iniciativa. Parabéns!

Anónimo disse...

Pueblo portugués: bien dotado para la poesía

Pedro S. Martins disse...

Boas composições.

Anónimo disse...

monumental "burraxeira"... hilariante