domingo, 12 de outubro de 2008
Na estante de culto
"ainda aqui este lugar"
Pedro Afonso
Editora 4águas
Este primeiro livro de poesia de Pedro Afonso é, também, a estreia de mais uma editora que acaba de nascer, a 4águas. Um editora do Algarve, região onde nasceram grandes poetas como todos sabemos.
O Pedro Afonso nasceu em Faro em 1979 e é um dos membros fundadores do Sulscrito, Círculo Literário do Algarve e faz parte da direcção editorial da revista literária Sulscrito.
O primeiro livro de um poeta, sobretudo se for jovem, é quase sempre olhado com alguma desconfiança. Há a tendência para se pensar (e muitas vezes acertadamente) que o autor não tem ainda a maturidade poética necessária. Muitos autores, depois de editarem vários livros ao longo da sua carreira literária, renegam as obras da juventude, sobretudo porque assumem que o que escreveram enquanto jovens não tinha ainda um estilo, um cunho, a sua própria voz poética, que o autor foi naturalmente encontrando ao longo da vida e da maturidade. E isto, os que encontram...
A poesia do Pedro Afonso tem, já neste seu primeiro livro, uma personalidade poética muito própria. O Pedro pode até ir traçando outros caminhos poéticos ao longo da sua carreira literária, mas este seu primeiro livro nunca o envergonhará e tenho a certeza de que ele nunca o renegará.
Pouco conhecia da poesia do Pedro Afonso, pois ele tinha apenas alguns trabalhos dispersos em algumas antologias. Mas ainda antes de ele publicar este livro, li um poema dele, que não está no livro, que me deixou alerta:
após que a morte os separe
se aquela ferida não lhe ardesse
no sal do tempo ao descoberto
essa obstinação quase vegetal de flor
se aberta não fosse viva
rubra e quente a ferida
astro tangendo o perpétuo
o agora seria uma infecção
de corpos decaídos
pus coalhos e puas de ossos
e lagos tépidos lamacentos
toca-lhe o reflexo com um pano
afaga a película do que resiste
abraça a ausência que ela lhe oferece
e a frescura que se intromete
no quarto muito claro que povoa
é salgada
um mar inquieto
de muitas canções vagas
que afinal sempre esteve ali
aquilo ali dura
como dura a pedra
A sensação imediata que tive, depois de ler este poema do Pedro Afonso, foi a de que estava ali um autor com talento. Um autor que, apesar de jovem, já sabia usar com mestria a subjectividade da metáfora e a adjectivação. E sabia construir um poema forte, num estilo claramente expressionista de imagens desconcertantes, mas ao mesmo tempo com ligação à terra. O sal, o mar, a pedra.
Este livro “ainda aqui este lugar” veio confirmar as minhas suspeitas do talento do Pedro e confirmar, também, a tendência expressionista e a ligação à terra.
ocorre-te sempre uma queda solitária
um som turvo demasiado distante
e na falta de um corpo
uma poça ausente de sangue
como que penetrando a terra
te faltasse nos braços
a carne de um socorro
e assim caminhas de membros
extintos por entre as casas
esperas da luz cada esquina
que te acenda o susto
da sombra do teu regresso
O tempo e a casa como lugar emocional são o cenário da primeira parte deste livro: a memória da infância, a casa que se constrói para se viver para sempre, o jardim que se embeleza como espaço afectivo e a procura do passado nas memórias, nas raízes, no cotão.
assim procuro por debaixo das minhas
raízes onde cotão e memórias crescem
mas nada por lá está onde é possível ver
No fundo, nestes poemas, temos de procurar “onde é possível ver”, nada aqui é imediato ou óbvio. Não se vê, intui-se.
E o Pedro enlaça-nos num confronto entre o passado e o presente, sem que se trate de passado nem presente, apenas o tempo numa concepção diferente.
“ainda aqui este lugar” é o lugar da memória do espaço e do tempo revisitados e reinventados.
Na última parte do livro, deixa-nos o autor um conjunto de poemas com o título “Boca Brusca”. Poemas sem pontuação onde esbarramos a certa altura com algo que nos tira a respiração:
à mesa o café solta um fio de fumo
a colher inútil o prato escusado
a sombra da mão que segura o cigarro
acorda-me do sono do fumo que sonho
a corda ou o fio de fumo que foge
vou agarrado às crinas de fogo
de um horizonte incandescente
cego na velocidade do avanço
do brilho que me rouba a pele
e me lava os ossos soltos no fumo
caio caio na cadeira em pé caio
para muito fundo eu vou
agarrado às crinas de fumo
de um horizonte de fogo branco
largo a pele os ossos e o nome
A poesia do Pedro Afonso é uma poesia em construção, sim. Mas já com personalidade, com voz, com coragem.
Com o poder de nos entrar na pele. E isso é o que mais devemos admirar em poesia.
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2 comentários:
Óptimo espaço. Um prazer o ter encontrado. Irei visitá-lo com frequência.
felicidades ao autor.
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