sábado, 27 de setembro de 2008

Na estante de culto



Sobre as Imagens

Amadeu Baptista
Cosmorama Edições
2008



Na poesia de Amadeu Baptista é frequente o diálogo com as outras artes, sobretudo a pintura, e este livro “Sobre as Imagens”, que ganhou o Prémio Nacional de Poesia Palavra Ibérica 2008 (um livro bilingue, com tradução em castelhano por Uberto Stabile) é constituído por um ciclo de 14 poemas, que têm por referência os 14 painéis de pintura flamenga do séc. XVI do antigo retábulo da capela-mor da Sé de Viseu (actualmente expostos no Museu Grão Vasco).
Estes painéis relatam episódios da vida da Virgem e de Cristo, na primeira fiada a Anunciação, a Visitação, a Natividade, a Circuncisão, a Adoração dos Reis Magos, a Apresentação no Templo e a Fuga para o Egipto. Na segunda fiada os últimos dias da vida de Cristo: A Última Ceia, a Oração no Horto, a Prisão de Cristo, a Descida da Cruz, a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes.

Embora pareça, não se trata de poesia ecfrástica pois este conjunto de 14 poemas não são descrições das obras de arte. O poeta apenas absorve o desígnio das imagens e descodifica-as para que cheguem ao leitor filtradas pela sua própria sensibilidade.
Amadeu torna-se um espectador que não impõe a sua visão, antes convida o leitor a partilhar o universo de uma imagem que ele tornou sua e que quis dar a todos. Lemos estes poemas e somos encaminhados pelo poeta para os afectos, para os cheiros, para os sons, para a dor, para os gritos, para a angústia, para a luz, para a escuridão, numa estrutura original que parece simples mas é muito trabalhada, com as palavras nos locais certos, com um resultado estético excelente.


Natividade

Assim nascemos, desconcertadamente desvalidos,
para triunfar da servidão e da pobreza. Caminha-se
toda a vida, mas o rudimentar momento da partida
indicia que a porta derradeira é a primeira e que, aqui chegados,
não somos mais que uma pedra nua onde pulsa um coração,
uma pedra que brilha, venham ou não os anjos acalentar
o templo, venham, ou não, outros pastores, de longe,
consolidar as nossas incertezas, trazendo uma medida de leite,
uma pele curtida, um bordão que possa florir.

Aqui estou, como se fosse orvalho sobre as palhas douradas
de uma manjedoura, e ouço na cabeça o clamor do universo,
esta angústia de tudo conhecer desconhecendo tudo, de que poder
vem a mim este poder, este tempo sem tempo
para o que foi semeado e à colheita chega já colhido
e os olhos do burro e o bafo da vaca docilmente adoçam
para que se não se quebre nenhum osso e nenhuma promessa.

Assim se nasce, e nasce-se para morrer, mesmo que a estrela
brilhe e a ressurreição seja a insurreição prescrita para a morte
e a humildade avise que a vida é lobo e é cordeiro
e que quando se nasce a vigília principia, porque tudo é vital,
visível e invisível, e tudo está escrito e consumado,
e em Jerusalém não fique pedra sobre pedra
porque somos e não somos mais que uma pedra infinda.

1 comentário:

João Moita disse...

"uma pedra nua onde pulsa um coração"

Uma boa epígrafe para um ensaio sobre a utilidade da poesia. O Amadeu tem destas coisas.