segunda-feira, 23 de junho de 2008

Os vossos poemas

O último desafio que vos lancei foi para que me enviassem os vossos poemas satíricos.
Conforme prometido, aqui estão todos os que me chegaram até hoje e, no final, o poema que foi escolhido para ser gravado em áudio pelo locutor Luís Gaspar.
Obrigada pela empenhada e divertida participação e... até ao próximo “espaço aberto”!


Antes chapa que motor

Trocou o carro amassado
comprou outro mais vistoso
para parecer director
um tipo de papo inchado

Mas não era um deputado
era apenas vendedor
de latas, cremes, papéis
e de almas ao diabo

Ele quer é ser senhor
que se lixe a fome em casa
que pr’a lhe polir a imagem
Antes chapa que motor

no carro velho é doutor
pois com cromados a brilhar,
passou a ser respeitado,
antes chapa que motor

E as dívidas ao leasing
do BM apetrechado
de FM ao volante
e um fio prateado?

Para ganhar pão e amor
e a imagem do poder
basta-lhe chapa brilhante
e que se lixe o motor

António Ferra


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O Call Center da minha prima

Prima, a tecla um
para assuntos comerciais de pouca monta,
prima, a tecla dois,
para saber das facturas que lhe debitam desencantos,
prima, a tecla três,
mas, prima, devagar, depois
de medir o que pergunta,
se quer saber se a vida é pr’a pagar
ao fim de cada mês,
na miséria que se junta,

prima, a tecla quatro
em desespero, porque não se sabe
com quem fala,
quem está do outro lado além da voz,
escondida numa sala,

prima, o cansaço pousado
numa mesa de cozinha
sobre copo de tinto a meio,
prima, a tecla cinco, que é minha,
onde vem as instruções
para horas de paleio

e para outros assuntos,
daqueles que causam dor,
prima, a tecla seis,
mas com cuidado
para não ser atendido
por qualquer operador

e veja com quem se mete
o náufrago sem jangada,
que neste mundo anónimo
onde «daqui fala fulana»
prima, a tecla sete
numa cabala montada


António Ferra


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Manual da Boa-Conduta

Neste sobe e desce da vida,
Na luta pela escalada social,
Há quem escorregue,
Há quem não sobreviva,
Há quem ao cair,
Fica nas bocas do mundo,
Vira esqueleto roído,
De forma sempre original.

Pode virar palhaço de circo,
Pode até ser fenomenal,
Provocar o riso às crianças,
Não parece assim tão mal.
O maior entrave estará,
Quando alguém se torna objecto,
Da perfídia de um adulto,
Ficará por certo moribundo,
A ela não escapará.

Mas no fundo da gaveta,
Da tua consciência,
Por certo encontrarás,
Um antídoto,
Um anti-corpo,
Que poderás usar,
Somente se fores um ser de privilégio,
Utiliza-o à vontade,
Não tem prazo de validade,
Encontrarás no Manual da Boa-Conduta,
A verdadeira fórmula,
O repelente para a Ignomínia,
Para o Escárnio.

Usa sem medo,
Está no Último Capítulo,
Chamado - Vida,
- Chama-se Indiferença.
Acredita é muito mais corrosivo,
Muito mais diabólico.
Tem como apanágio,
Aniquilar por completo a fera inimiga,
A mais valia?
Acredita,
Destrói e não nos vitima!

Beatriz Barroso


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Zombaria, é meu nome

De onde venho?
Das bocas do Mundo,
Do Inferno das emoções,
Da Alma de um energúmeno,
Que jamais de mim se apartou.
Como me chamo?
Eu sou a Zombaria,
Não durmo nem à noite,
Nem de dia,
Sou criatura demoníaca,
Alimento-me da desgraça,
A perfídia é minha sina.
Adoro fazer chalaça,
Brincar com as consciências,
Fingir-me doce criatura,
Mas mordê-las com minha ira.
Deste motejo,
Eu me alimento.
A meu irmão gémeo,
- O Sarcasmo,
Eu tenho que dar sustento.
Somos dois num corpo só,
Por isso muito valemos,
Ai, daquele desgraçado,
Que cair no nosso alvo,
Eu dou asas à minha veia,
Meu irmão, a sua maligna língua,
Agarramo-lo pelos braços,
Damos-lhe uma trincadela,
E o desgraçado quase morre,
De vergonha e de desonra.
Mas adoramos nossa vítima,
Gostamos de a ver de si perdida,
Mas temos um pacto com a Vida,
Quanto mais vivo e feliz o humano nos parecer,
Mais será um ser apetecível.
Que bom será com ele conviver,
Estar sempre em boa companhia,
Será sempre o nosso lema!

Beatriz Barroso


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Maledicência

Um sorriso escarlate,
Um gesto irónico,
Um segredo falante,
Não comedido,
Um olhar esquivo,
Fingindo-se amigo,
Fala no feminino,
Carrega consigo,
A maledicência,
No semblante.
De forma altiva.
Segura de seu juízo,
Faz de seu quotidiano,
Acto sagrado,
Neste Carnaval da vida,
Há muito festejado.
Cumpre-se o rito.
Mas a mim que importa,
Se tem aplauso?
Se sou poeta,
Sou imune de alma,
Na arte de enganar,
De fingir,
De seduzir,
De criticar,
Basta querer,
Sou melhor que os Sofistas,
Sou eu o mestre!

Beatriz Barroso


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Meritocracia e má língua

Ah, a excelência,
Onde está ela?
O belo,
O verdadeiro,
O genuíno,
Fugiram?
Estamos todos convertidos,
À fé, não do Cristianismo,
Apenas ao culto do Comparativismo.
Na dialéctica desta vida,
Sai agora vencedor,
O melhor mentiroso,
O melhor arrivista,
O melhor aleivoso,
Até já o falso artista,
Esse mesmo,
Faz furor!
Sabem que mais?
Continuamos a ser humanos,
Mas não gostamos do Ser em nós.
Porque nos comportamos todos,
Como meros cavalos de competição?
Já lá vai o mérito do berço,
Da posição social,
Da riqueza familiar,
Dos valores verdadeiros, senhores,
Onde é que eles já vão!
O que conta agora,
É a ideologia do sucesso.
Sermos todos Doutores,
Mesmo que falsos.
Que importa ser apenas
Feliz do coração?

Beatriz Barroso


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Eles

Soam cornetas, clarins!
Tambores rufam, tresloucados,
E ufanos, emplumados,
Eis os doutores que se agitam.

Vozes gritam, retumbantes,
Discursando, sapientes,
Sábios doutores, reis das gentes,
Que o saber ao mundo ditam.

Mil glórias, vaidosos, contam,
De rastos, modestos, coram.
Desencantam, de improviso,
Discursos que o povo encantam,
E à socapa decoram.

Sabem rir quando é preciso
E chorar na ocasião.
Suaves, doces, emotivos,
Brandos, persuasivos,
Negam ao povo o seu pão.

Ilona Bastos
1982

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Marino & Jesus

Pensava em morrer
Maldizendo a vida
Negócio fácil para deixar
Meu mal-amanhado

Loucura mesmo
É garantir o lugar
Antes de morrer,
Não?

Já até adiantei-me
Sobre o preço da cova
Fui até a ACESF
Negociar a tumba

Pra morrer por aqui
Barato não é...
Quanto será que é?
Deus-me-livre!

Penso em viver
Morrer em Londrina
É saco de mal cheiro
Não é verdade,
Marino & Jesus?

William da Cruz

Nota do autor:
Moro em Londrina (Brasil). Marino e Jesus eram os mediadores para a venda de túmulos antes da morte, o que é terminantemente proibido.


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Comícios

Na voz arrebatada de quem discursa
Nos gestos exaltados de quem representa
Saltam mil mensagens de promessa radiosas
Espreitam mil esgares de ilusões fantasiosas.
E a multidão grita frenética mil palavras
E os da frente ou os que se querem mostrar à frente
Entoam canções que fazem adormecer sorrindo
As que embalam para votar dormindo.

Todo o país se transforma e cresce tem de crescer
São as promessas enormes
De enormes autoestradas e aeroportos
De enormes metrópoles de compras sem limites
De enormes espaços verdes e de lazer
O país definitivamente tem de crescer!

E os gestos continuam e o olhar brilha com intensidade
O Sol esse clarão imenso é ofertado de bandeja
Os que estão em bicos de pés
Já o sentem
Já o disputam entre si
E entoam cada vez mais sonoros os hinos
Que deslizam nos ecrãs gigantes.

E sai a procissão até ao altar de todos os divórcios.

J. Caldas

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STF e Células Tronco

O Menezes, que é Dereito,
moço munto do escorreito,
vai botá orde na casa.

Já ligô pro Vaticano
- que que ocêis está pensano? -
pra sabê como se embasa.

"Teje carmo, num te avexe,
que comigo ninguém mexe
esse tema não me escapa."

Foi o que dixe o pontife
nesse momento difice:
"Eu ainda sô o Papa.

Quem mexê com embrião
não irá pro céu mais não,
vade retro satanais."

Só pra enquadrá o Ayres Brito
arterô, gesto isquisito,
sete pecados mortais.

Adauto Suannes

Nota do autor: A nossa Corte Suprema - Supremo Tribunal Federal (Brasil) julgou a questão da pesquisa com embriões, tema que alvoroçou muita gente por aqui. Comentei, à maneira dos cantadores do nordeste, o fato com estes versos.


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Maternidades Encerradas
(inspirado num cartoon de Luis Afonso)

Tantas maternidades encerradas!!!
Nem deve este Governo ter pensado
Que agora nos IPs e Auto-estradas
Nascem bébés em série... Complicado!

Qualificar "chauffeur" e ajudante
E pô-los de parteiros com afinco,
Exige uma mudança importante
Que não é para todos! Não, não brinco!

Quanto à identidade, no Bilhete,
Vejam o que a medida também fez:
"Menino natural do IP 7"
"Menina de IC 1, ou da A-3..."

Joaquim Sustelo

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Na Cauda do Cometa

Vamos suspensos na cauda do cometa
Numa longa viagem
Em que o destino não promete;

É precário o equilíbrio onde a muleta
Evita a estatelagem...
Colados ao pelotão. São vinte e sete.

Necessitamos forças. Mais e mais.
E os braços estão dormentes;
Aqueça-nos a chama que inda existe!
Fecharam hospitais
Proibido ficar doentes!
Sejamos alegres e fortes,
(só assim se resiste!)

Envelhecidos, pouca gente nasce...
Faltam as condições,
(os jovens não são tontos...)
O caminho faz-se
Aos trambolhões;
Já não chegam os descontos...

E saem normas
Que atrasam as reformas.

Não chegam os descontos? É Mentira!
Então e o Mira?
E os outros "miras" todos
Com desafogos, com tudo o que é bom
Aos montes e a rodos?

Uma engenharia financeira
Em bancarrota
Que faz que sobrem
Cinco mil milhões prá Ota
não sei de que maneira!
Uma Ota onde os otários
Não se apercebem de interesses
Que são vários...

Era uma vez
Uma maternidade fechada
E o menino foi nascer no IP3
- não venceu a distância...
(Aliás passou a ser em abundância
O acto de nascer em plena estrada.)

Olha, aquele concelho
Tem mais rotundas do que o nosso...
Ah, não! Não posso!
Vou já ultrapassá-lo,
Não me intimido!
Sei que me endivido...
- Deixá-lo!

E aquele menino?
Tem a tantos quilómetros o ensino!
Fecharam as escolas
Ao pé da sua casa;
Lá vai com pressa
Pra ver se não se atrasa!

E o cometa segue...

- Na frente os batalhões
Com rápido andamento;

- A cauda aos trambolhões
Aguenta como pode...
Sem euros, sem tostões
Para manter a armada;
Coçando no bigode
Já a pensar que cai...

Decerto ainda vai
Pela água que mete,
Cair dos "vinte e sete"
E optar pela jangada.

Joaquim Sustelo

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(N)o Meu País

O meu País pode estar
Prestes a fechar... E a reabrir.

Já com tantas maternidades encerradas
Assiste-se hoje em dia a esta façanha:
Em muitos casos vai-se nascer a Espanha
(se se conseguir
lá chegar...),
Se não, é nos IP's, ou nas auto-estradas.

No meu país ao sul com um lugar ao sol
Que acolhe sem taxar tanto magano,
Dizem que um médico espanhol
De oftalmologia,
Fez tantas operações num dia
Como um colega seu (daqui)
Faz... Em todo um ano!

- Eu li!

E sempre que a lista de espera
Ou o preço pedido suba,
O paciente português já assevera
Que vai tratar do caso a Espanha
Ou vai a Cuba!

O meu País está em primeiro na UE
Em desigualdades económicas, sociais...
E já se vê
Um quinto em gente pobre!
Enquanto uns poucos, sem nada que lhes sobre,
Ganham de mais.

O meu País, além destes desníveis
Em que campeia,
Tem outros... E já se faz cara feia
(com bom motivo)
Ao preço proibitivo
Dos combustíveis.

Por perto da fronteira
Vendê-los, nem se pensa!
Não há maneira...
A diferença de preço ela é tamanha
Que até de Faro já compensa
Ir atestar depósitos a Espanha!

Bem, no meu País,
Ele é tanta coisa junta,
Que, infeliz,
até a minha mente já pergunta:

- Se, quanto ao futebol, se vai lá fora
Buscar bons jogadores
E até dá resultado,
Porque não solucionam sem demora
(sim, quanto antes...)
E não vão também lá fora, ao mercado,
Sem olhar a cores,
Buscar também... bons governantes?

Gente com experiência
Que mexa e que remexa...
...a ver se o País fecha
Reabrindo depois,
já com nova Gerência!

Joaquim Sustelo

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Processo Penal

O novo Código de Processo Penal
Tem um abcesso
Ou estará por eles possesso.
E ao nascer assim tão torto,
Que mau foi não ter sido um nado-morto!

De letra cega e tão crua,
Já pôs na rua
Seres horrorosos,
Violadores, assassinos,
Reles criminosos
Que mudam o bom curso dos destinos.

A insegurança
Silente avança,
Sem que tenha havido
A voz discordante de qualquer Partido...
Nem um só ai, nem um só gemido!
Nem um "tuge" nem um "muge!"
- Quais lambe-cus
Consentidores
De tão sabidos legisladores.

Apenas algumas vozes
(Menos do que as nozes),
Dizem discordar
E que talvez já vá ser revisto;

E o povo, à rasca,
Come e engasga
- Já viram isto?

Novo Processo Penal...
E fica quem o fez tão orgulhoso!
Código
Ou Pródigo?
- Que se gasta afinal
Pensando no Penal
Mas criando um que é Penoso.

Ele é bem o espelho
Deste país que temos...
Um legislar sobre o joelho
De forma inexplicável;
E onde alguém
Com responsabilidade
Num Ministério, dito da Equidade,
Diz do alto do seu virtuosismo
Intocável,
Que "na sociedade
é Que se está a criar
Um alarmismo irresponsável."

Joaquim Sustelo

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Volta, Zé Maria...
Estás perdoado!


Podes voltar, Zé Maria
estás perdoado!
Este Portugal
continua igual!

Em campanhas alegres
os Abranhos e os Salcedes
continuam a bengalar-nos
como num sacrifício dos Maias

O povo corre p'rò "americano"
mas se não faltam as pernas
saem-nos as greves ao caminho
na cidade e nas serras

Pode voltar, Zé Maria
estás perdoado!
Este Portugal
continua igual!

E se voltares, Zé Maria
aceita um bom conselho:
limpa o teu monóculo com desvelo
e afia bem o teu aparo

Se te puserem um écran à frente
seja PC ou MacIntosh
não te assustes
é mesmo assim

Carrega no botão, apaga tudo
compra uma resma de "Navigator"
e põe-te a navegar com tua pena
na "Net" das nossas misérias

Luís Graça

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E finalmente, o poema vencedor deste passatempo, gravado em áudio pelo locutor Luís Gaspar:


Jean Metzinger: na pista de ciclismo

estavam os apóstolos na paragem do 90
no rossio e jesus apareceu-lhes.
acima das cabeças elevou-se, sobre cada um,
uma língua de fogo, como que a mostrar-lhes
o caminho para o martinho da arcada,
onde estava combinada uma última ceia.
pedro ia em silêncio, a fumar um puro montecristo
nº. 3, enquanto que tomé pedia ao mestre
para ver as marcas do infortúnio
e tocar, ainda que ao de leve, as cicatrizes.
mateus levantou os olhos um momento
do financial times e ponderou
ser aquele um bom local
para abrir uma loja de câmbio.
joão persignou-se e olhou para maria
madalena, também presente,
carregada de sacos da fnac e do corte inglês,
tendo entrevisto, atrás de uma coluna,
o gang de pessoa, que de súbito fugiu,
por estar em menor número.
tiago, o maior, foi comprar
um braçado de rosas, que entregou
a maria, que, muito consternada,
pediu encarecidamente que a levassem
ao pavilhão chinês, no príncipe real,
para tomar um chá de folhas de jasmim.
felipe meditava, tirando apontamentos
sobre os efeitos nefastos de outra guerra
entre judeus e árabes. tadeu
mascava chiclets, para enganar
o martírio da ressaca, implorando a simão
cinquenta euros para dois gramas de pó,
pelo que foi admoestado com maus modos
por zebeu, que estava a seu lado,
a observar uma negra lindíssima que passava
com as calças muito justas, bordadas
a amarelo com ramagens e pássaros
e uma blusa transparente, toda aberta,
que lhe deixava visíveis, quase completamente,
os seios. andré seguia atrás, vociferando
contra o custo de vida e lembrando-se
do tempo em que era pescador e a abundância
de sardinha era tão grande
que nem sequer tinha cotação no mercado.
bartolomeu vinha no meio, a rogar pragas
pelo trânsito da cidade e a poluição,
e a pensar que, nas próximas eleições,
iria apresentar candidatura ao município
como independente, nas listas do partido.
a dada altura, notaram que judas
não estava no grupo e foram procurá-lo
à praça da figueira, onde andava às moedas,
a guardar carros. então, um transeunte,
reconhecendo o mestre, aproximou-se e disse
que só mesmo por milagre o poderia
encontrar ali e em almada vê-lo a abraçar
lisboa. ao que o mestre retorquiu, ó príncipe,
meu príncipe, não me tentes de novo.
eu faço corpo com a evanescência,
mas não há maior prodígio que escapar ileso
ao trânsito infernal da 24 de julho.
e, isto dito, partiu, de bicicleta.

Amadeu Baptista





Mais uma vez, obrigada a todos pela participação e obrigada ao Luís Gaspar pela gravação do poema.

2 comentários:

Adauto Suannes disse...

Parabéns ao Amadeu. Inspiradíssimo!

Anónimo disse...

Obrigada, Inês, pela oportunidade de mostrarmos os nossos escritos - neste caso, aqueles que provavelmente ficariam no fundo da gaveta, mas que são, afinal, os mais saborosos de ler! Soube mesmo bem esta leitura que, no mínimo, nos faz sorrir. Parabéns a todos, e muito especialmente ao vencedor, cujo poema é na verdade muito original, bem escrito e combinando uma série de referências muito bem caçadas. Uma vez mais, obrigada!