sábado, 3 de fevereiro de 2007

Na estante de culto




Outono Transfigurado

Ciclos e Poemas em Prosa
Georg Trakl
Edição bilingue
Tradução e prefácio de João Barrento
Editora Assírio & Alvim
N.º 13 da Colecção Documenta Poética
Ano de Edição: 1992

Na capa: Poema manuscrito por Georg Trakl sobre envelope



A poesia de Georg Trakl, como a de grande parte dos expressionistas, é marcada por uma profunda angústia, melancolia e desespero humano. No caso específico de Trakl, ressalta a obsessão pela temática da Morte. Trakl mantinha ainda um diálogo constante com o simbolismo francês, em especial Rimbaud e Baudelaire, simbolismo este elevado a um grau superior de ascese da linguagem.

Esta selecção de textos inclui quase todos os ciclos de poemas e poemas em prosa de Georg Trakl. São, na sua maioria, poemas nunca traduzidos em Portugal, cujas traduções aqui trazidas pela mão de João Barrento, seguem as versões originais estabelecidas pela edição crítica de Walter Killy e Hans Szklenar (Salzburgo 1969).


Ocidente
(4.ª versão)
Em honra de Else Lasker-Schüller


1.
Lua, como se saísse coisa morta
De azul caverna,
E das flores em botão muitas caem
Sobre o atalho rochoso.
Argêntea, chora coisa doente
Junto ao largo da tarde,
Em negro barco
Amantes se passaram.

Ou são os passos de Élis
Que soam pelo bosque,
O de jacintos,
Perdendo-se de novo sobre carvalhos.
Oh, a imagem do rapaz
Moldada por lágrimas de cristal,
Sombras nocturnas.
Relâmpagos rasgados iluminam-lhe as fontes,
As sempre frescas,
Quando na colina verdejante
Ressoa a trovoada primaveril.

2.
Que silêncio, o das verdes florestas
Da nossa terra,
Da vaga cristalina
Morrendo contra um muro em ruínas,
E nós chorámos durante o sono;
Deambulam com passos hesitantes
Ao longo de espinhosa sebe
Cantores no verão da tarde,
Na paz sagrada
Do reflexo distante de vinhedos;
Sombras agora no fresco seio
Da noite, águias carpindo.
Que silêncio o do raio lunar fechando
As marcas purpúreas da melancolia.

3.
Vós, grandes cidades
petreamente construídas
na planície!
Mudamente,
fronte ensombrada,
o sem-pátria segue o vento,
as árvores nuas na colina.
Vós, rios do longínquo entardecer!
Vermelho crepuscular aterrador
cria portentosos terrores
em nuvens de tempestade.
Vós, povos moribundos!
Pálida onda
desfazendo-se nas praias da noite,
estrelas cadentes.


Ainda, um exemplo da beleza brutal da poesia de Trakl, neste poema em prosa:



Noite de Inverno

Caiu neve. Depois da meia-noite, ébrio de vinho purpúreo, deixas o espaço sombrio dos homens, a chama vermelha do seu lume. Oh, a escuridão!
Geada negra. A terra está dura, o ar tem um sabor amargo. As tuas estrelas juntam-se e formam sinais malignos.
Com passos empedernidos caminhas ao longo da linha férrea, de olhos redondos, como um soldado que ataca uma trincheira negra. Avante!
Neve amarga e lua!
Um lobo vermelho a ser estrangulado por um anjo. As tuas pernas tilintam, a andar, como gelo azul, e um sorriso cheio de tristeza e arrogância empederniu-te o rosto, e a fronte empalidece com a volúpia da geada;
ou inclina-se em silêncio sobre o sono de um guarda que se deixou cair na sua cabana de madeira.
Geada e fumo. Uma camisa branca de estrelas queima os ombros que a vestem e os abutres de Deus dilaceram o teu coração de metal.
Oh, a colina de pedra! O silêncio derrete, e esquecido jaz na neve argêntea o frio corpo.
Negro é o sono. O ouvido segue longamente os atalhos das estrelas no gelo.
Ao despertar tocavam os sinos na aldeia. Da porta do levante nascia, argênteo, o dia rosado.

2 comentários:

Anónimo disse...

Alma
Repito; escrever é a arte mais difícil do Mundo, apenas ao alcance das nem sempre pródigas criações divinas.
Seríamos todos bons escritores...
Naturalmente que não ponho em duvida o altíssimo nível de João Barrento.
Referia-me ao que naturalmente "se perde" do sabor original.
bj
Luís

Anónimo disse...

No que toca ao alemão, os livros estão bem entregues nas mãos de João Barrento e Vasco Graça Moura. Pode-se sempre confiar.
Mas como não domino o alemão não posso fazer a "ponte", como me acontece com o Rimbaud e o Beaudelaire, duas referências fundamentais para mim.