quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago

Interpretado pela Andante:

Voz: Cristina Paiva; Música: Eleni Karaindrou; Sonoplastia: Fernando Ladeira

3 comentários:

Anónimo disse...

Saramago recebeu hoje prendas únicas que muito o comoveram, foi o que ele disse nos telejornais…mas ninguém lhe falou da bela prenda que a Inês lhe deu hoje aqui, além de lembrar a efeméride e de um breve registo biobibliográfico, postou-lhe um poema retirado do livro “Os Poemas Possíveis” (“Poema à Boca Fechada” –que é a cara do Saramago) eis a singularidade da prenda, o espanto foi esse, num blogue de poesia a Inês encontrou a forma de homenagear o romancista, o romancista por excelência…um contador de histórias que nos apaixona e nos fascina…não que ele não tenha escrito livros de poesia, mas ele é o ROMANCISTA… sendo também verdade que em algumas passagens dos seus livros a poesia está lá…dou exemplos:

Verifico que mais fácil me foi ir dizendo quem era do que afirmar hoje quem sou.
(Manual de Pintura e Caligrafia pag.261)

A segunda língua sem a primeira serve para contar histórias, as duas juntas é que fazem a verdade.
(Manual de Pintura e Caligrafia pag.280)

Este viver é feito de palavras e repetidos gestos. (Levantado do Chão, pag.53)

Estar só, é muito mais do que conseguir dizê-lo e tê-lo dito.
(O Ano da Morte de Ricardo dos Reis, pag.125)
para já não falar nas páginas sobre Blimunda no Memorial...

Parabéns Inês na forma encontrada…associo-me a ti neste presente ao Saramago!!!!

(e francamente, haja alguém que lhe fale desta prenda)

Anónimo disse...

A Inês é um pilar de meiguices, mas o Saramago vive com outra Pilar.
Esta prenda podia ser embrulhada num Lanzarote todo estiloso.

Andante disse...

em 30 de Novembro de 2001 fomos convidados para fazer "algo" na abertura da Biblioteca Municipal José Saramago de Loures.
de entre outras coisas passámos por este poema