terça-feira, 7 de novembro de 2006

Na estante de culto




«O novo estilo “expressionista”, que a si próprio se não chamava ainda assim, irrompe deste modo na Berlim de 1910, com a força e a luminosidade de uma visão cósmica e metafísica, recusando o preciosismo e os clichés simbolistas-decadentes, o subjectivismo morno do neo-romantismo, a atomização superficial dos impressionismos e, evidentemente, tudo o que soasse a mera descrição ou a resquícios de Naturalismo. Agora, “não se via, intuia-se, não se fotografava, tinham-se visões”, escreve Kasimir Edschmid num conhecido manifesto de 1918. Causalidade, positivismo, psicologia, cedem o lugar à forma essencial que rejeita o jogo das aparências, ao espírito (Geist) que tudo informa, à palavra que, com o um dardo, “penetra no interior do objecto e é animizada por ele, cristalinizando-se na própria imagem da coisa”. Cai o acessório, substancializa-se a expressão, e a arte e a literatura encaminham-se progressivamente para uma dupla via, que os anos seguintes verão desenvolver-se em paralelo: a da assimilação do sentido ético e existencial ao próprio plano estético, o que corroborará as leituras do Expressionismo como um ideário (Gesinnung) e uma visão do mundo; e a da abstracção, que se estende do “Simultaneísmo” dos poetas do grotesco ao experimentalismo proto-concretista do círculo da revista Der Sturm (A Tempestade) e que poderia legitimar, num sentido muito sui generis, as leituras do Expressionismo como um estilo (que ele, na sua globalidade, não foi). Dos muitos poetas desta primeira fase berlinense, a maior parte deu expressão visionária ao universo preferencial, por atracção ou repúdio, dos primeiros anos do Expressionismo alemão: o mundo urbano, a cidade mitificada e transfigurada.» Da Introdução.


A Alma e o Caos
100 poemas expressionistas


Selecção, tradução, introdução e notas de João Barrento
Editora Relógio D'Água, 2001



Fim do mundo

Há um chorar no mundo,
Parece que o bom Deus morreu,
E a plúmbea sombra, que cai fundo,
Pesa como mausoléu.

Vem, vamos esconder-nos mais...
A vida está em todos os corações
Como em caixões.

Ouve! Vamos beijar-nos e esquecer –
Há uma saudade que bate à porta do mundo,
E dela acabaremos por morrer.

Else Lasker-Schüller
(1905)

4 comentários:

Anónimo disse...

João Barrento é garantia de trabalho cuidado.

Anónimo disse...

Inês
Apesar de ser um recente iniciado na poesia expressionista alemã não posso deixar de vir aqui fazer um pequeno comentário sobre essa poesia que acompanha o período bem agitado que vai desde os anos de 1910 (imperialismo sob Guilherme II) todos os anos da simplesmente chamada I Guerra Mundial (*), os anos da revolução russa e a tentativa de instauração de uma república socialista na Alemanha que como se sabe acabou por originar o regime da República de Weimar mas embora muito datada e como tal não fugindo ao quadro em que se encontrava envolvida foi o expressionismo, “acima de tudo, um momento de complexidade e de contradição. E porque foi processo dinâmico e não realidade estática, latência e não apenas factualidade, porque foi ambíguo (dialéctico) e polivalente e representou uma clara vontade de libertação, o expressionismo não se deixa prender em esquemas pré-definidos, nem cristalizar em definições simplistas e juízos dogmáticos.” como diz João Barrento em “Expressionismo Alemão - Antologia Poética”, Ática, 1976?
Sei que tenho adorado a descoberta através deste livro do João Barrento que poderá ter sido uma primeira versão desse “A Alma e o Caos” que aqui apresentas. Não resisto a deixar um exemplo singular da mesma poetisa encontrado a páginas 191:

Despedida

Mas tu nunca vinhas com a noite –
E eu sentada com casaco de estrelas.

...Quando batiam à porta
Era o meu próprio coração.

Agora pendurado em todas as ombreiras,
Também na tua porta;

Entre touros rosa de fogo a extinguir-se
No castanho da grinalda.

Tingi te o céu cor de amora
Com o sangue do meu coração.

Mas tu nunca vinhas com a noite –
...E eu de pé com sapatos dourados.

Else Lasker Schüller
(1917)

(tradução de João Barrento)

(*) as outras anteriores desde Caim – onde pereceu ¼ da população mundial – (vide Antigo Testamento, Génesis, 4-8) eram menos abrangentes ou tinham nomes mais pomposos como Cruzadas, Guerra dos Cem Anos, Descobertas!!!!

Inês Ramos disse...

É de facto maravilhosa a poesia de Else Lasker-Schüller, uma grande poetisa judia (filha de um rabino) que recebeu em 1927 o prémio Kleist, mas que morreu na miséria.
No dia do seu nascimento (11 de Fevereiro), prometo que lhe farei uma homenagem à altura, dando a conhecer aqui, alguma da sua poesia.

Anónimo disse...

...mal posso esperar pelo 11 de Fevereiro...é uma data impossível de esquecer...estarei na primeira fila!!!!