domingo, 5 de novembro de 2006

Na estante de culto







"Poemas da Prisão e do Exílio"

de Nâzim Hikmet


Aproveitando a deixa da livraria "Da Mariquihas", que durante esta quinzena tem este belo livro em promoção, aqui fica mais um apontamento de um livro da &etc que não nos deixa indiferentes.
Nâzim Hikmet era um grande poeta e um homem lendário. Por maior sofrimento que tivesse tido na sua vida, nunca se deixou vencer, passando para a sua poesia um enorme entusiasmo e uma enorme esperança. Nâzim Hikmet conseguiu, graças ao seu génio, alcançar admiração por parte de quem o escutou e leu, pela sua coragem, solidariedade e humanidade.
O poeta turco Nâzim Hikmet nasceu em 1902 na Salónica (na altura, parte do Reino Osmânico) e morreu em Junho de 1963. Passou praticamente toda a sua vida na prisão ou no exílio e a sua poesia é lida em todo o mundo.


O espelho encantado

Praga é um espelho encantado
Ao olhar-me nele
Encontro os meus vinte anos
Sou como um salto em frente
Sou como trinta e dois dentes
sem cárie
E o mundo é uma noz
Mas não quero nada para mim
Só a mulher que amo
A tocar os meus dedos com os seus
Que abrem todos os mistérios do mundo

As minhas mãos partem o pão
pouco para mim
Muito para os meus amigos
Nas aldeias da Anatólia
beijo olhos que sofrem de tracoma
E chego algures a terra distante
Para a Revolução mundial
Trazem o meu coração num coxim de veludo
Como se fosse a ordem da bandeira vermelha
Uma fanfarra toca a marcha fúnebre
Sepultamos os nossos mortos junto de um muro
Sob a terra
Somo sementes fecundas
E as nossas canções estão escritas na terra
não em turco, russo ou francês
Mas em cançonês
Lenine está acamado numa floresta com neve
Franze as sobrancelhas
A pensar em alguém
Olha até ao fim das trevas brancas
Vê os dias que hão de vir

Sou como um salto em frente
Sou como trinta e dois dentes
sem cárie

E o mundo é uma noz
Com uma casca de aço
Mas inchada de esperança
Praga é um espelho encantado
Olho-me nele
Mostra-me no leito de morte
A testa alagada em suor
Como se a cera da vela tivesse gotejado
Os braços ao longo do corpo
A tapeçaria verde
E pela janela
Os telhados cobertos de fuligem de uma grande cidade
Esses telhados não são os de Istambul
Os meus olhos estão abertos
Ainda os não vieram fechar
Ainda ninguém sabe
Inclina-te para mim
Olha nas minhas pupilas
Verás nelas uma mulher jovem
Na paragem do eléctrico à espera à chuva
Fecha-me os olhos
E em bicos de pés
Sai do quarto, camarada.

Nâzim Hikmet
(Tradução de Rui Caeiro)

Edição & etc
(2000)

Capa de Carlos Ferreiro

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou a descobri-lo, aos pedacinhos, depois de mais uns desbravanços no "Expiação", do McEwan, próximo livro da Comunidade da Culturgest. Já com texto a formar-se na cabeça, muitos apontamentos miudinhos à Lobo Antunes e a segurança de saber que já cheguei à página 200.

Anónimo disse...

Aproveitei a ida ao “Da-Mariquinhas” e trouxe comigo o Nâzim Hikmet com 15% de desconto, uma pechincha face à qualidade do que já li e, como me alertava o “Mestre Changuito”, lê-se com tanta clareza é tão fluido, as palavras como que escorregam da garganta que, por vezes, quase não se dá pela densidade do que está escrito, a profundidade do que é transmitido, será pelo tom familiar, será pelo calor humano que sentimos, e no entanto ela está lá e aos poucos entranha-se em nós as verdades que ele dá...exemplo flagrante “Angina de Peito” a pags. 59. Uma poesia plena de originalidade e que como se diz na introdução (A HONRA DO ESPÍRITO) “situa-se na linha de Maiakovski e Garcia Lorca”.
Já agora aproveitei e trouxe também comigo “O Libro de Nanas” com poemas de Garcia Lorca, Gloria Fuertes, Miguel Hernández, Gabriela Mistral, Victor Jara entre outros, livro profusamente ilustrado com desenhos de Noemí Villamuza, um encanto como “Libro para Niños e no solo para niños” e acompanhou-me uma gentileza da casa o “Rio Arade” do Carlos Mota de Oliveira...e ficaram-me os olhos e o pensamento presos a mais de uma dúzia de outros que por lá andam...