sábado, 26 de agosto de 2006

Julio Cortázar

Poema

Amo-te por sobrancelha, por cabelo, debato-te em

corredores branquíssimos onde se jogam
as fontes de luz,
discuto-te a cada nome, arranco-te com
delicadeza de cicatriz.
Vou-te pondo no cabelo
cinzas de relâmpago
e fitas que dormiam à chuva.
Não quero que tenhas uma forma, que sejas
precisamente o que vem atrás da tua mão,
porque a água, considera a água e os leões
quando se dissolvem no açúcar da fábula,
e os gestos, essa arquitectura do nada,
acendendo as lâmpadas a meio do
encontro.
Todas as manhãs és a ardósia em que te invento
te desenho.
Pronto a apagar-te, assim não és, nem tão pouco com
esse cabelo liso, esse sorriso.
Busco a tua soma, a beira da taça onde o
vinho é também a lua e o espelho,
Busco essa linha que faz tremer um homem
numa galeria de museu.
Além disso amo-te, e faz tempo e frio.

Julio Cortázar

Julio Florencio Cortázar nasceu em 1914, filho de Julio Cortázar e María Herminia Descotte, em Bruselas, Argentina.
Aos dois anos, vai com os pais para a Suiça, onde a família aguarda o fim da Primeira Guerra Mundial, para regressar à Argentina em 1918.
A família instala-se en Bánfield, um subúrbio de Buenos Aires e o pai (de quem Julio nunca quis saber) abandona a mulher e os dois filhos. Julio é criado pela mãe, uma tia, a avó e a irmã Ofelia, um ano mais nova.
Em 1932, gradua-se como professor primário e tenta sem êxito viajar para a Europa num navio mercante. Três anos depois, entra para a Faculdade de Filosofia e Letras, faz o primeiro ano, mas tem de abandonar os estudos por razões económicas, e vai dar aulas.
Em 1937 publica a sua primeira colecção de poemas, “Presencia” com o pseudónimo de Julio Denis.
Publica o primeiro conto, “Bruja”, em 1944, na revista de Mendoza, “Correo Literario” e participa em manifestações contra o peronismo. Renuncia um ano
depois às cátedras que ministrava em Mendoza, dada a vitória de Perón nas Presidenciais de 1945. Publica o primeiro livro de contos, “La otra orilla”.
A revista “Los Anales de Buenos Aires”, dirigida por Jorge Luis Borges, publica-lhe em 1946 o conto “Casa”e um ano mais tarde, o famoso “Bestiário”.
Em 1949, a crítica ignora o primeiro poema publicado sob o seu verdadeiro nome, “Los Reyes” e Cortázar escreve o primeiro romance, “Divertimento”, a
que se seguiria, um ano mais tarde, o segundo, “El exámen”, que só foi editado de pois da morte do escritor.
Em 1951 publica o primeiro livro de contos, “Bestiario” e dois anos depois casa-se com uma tradutora argentina, Aurora Bernárdez.
Começa a escrever as suas “Histórias de Cronopios y de famas” , que publicará nos anos 60, década em que se vê traduzido para inglês, francês e português.
Os anos 70 são os da consagração mundial. Publica, faz conferências e separa-se da segunda mulher, Ugné Karvelis. Vai viver para Paris, num exílio auto-imposto.
Em 1981, num dos seus primeiros decretos, o governo socialista de François Miterrand concede-lhe a nacionalidade francesa. No mesmo ano, é-lhe diagnosticada uma leucemia e fica viúvo da terceira mulher, Carol Dunlop, com quem escreveu, a quatro mãos, o seu último romance, editado postumamente.
Cortázar morre em 1984, num hospital de Paris.


(Esta nota biográfica de Julio Cortázar é uma cortesia do jornalista António Costa)

1 comentário:

Filipe D. disse...

Poucos entendem a beleza de uma poesia como esta.