quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Novidades &etc






K3

Nuno Dempster
Capa de Maria João Lopes Fernandes
&etc, Janeiro 2011






(...)
A encruzilhada
que nos ia levar estava aberta
e o caminho era só um:

cada dia passado,
um risco a esferográfica,

interminável pente de sueca,
em cujo fecho havia um passaporte
para terras miríficas,
onde, à noite, limusinas
levavam putas de ouro
e traziam casais de noivos
a hotéis de cinco estrelas,
e fontes camarárias de cerveja
submergiam a sede de África,
terras onde prodígios
como esses poderiam suceder
depois do derradeiro traço,
ninguém adivinhava quando.

Oh, o calor
que formava uma abóbada
com o céu sempre baixo,
fazia-me pensar em algo aparente-
mente fácil como esse engano,
a que qualquer um se dava
por nada mais haver que riscos,

quatro na vertical e um atravessando-os,
tosco calendário ao invés, que assinalava
cinco dias passados para sempre,
se houvesse para sempre,
que o mesmo é de nada ter memória,

riscos que se mantinham, cicatrizes
muito depois abertas para que
a matéria purgasse

e fosse envenenando o cérebro,
trazendo consigo a insónia
e o amargo desconforto que, na paz,
vai devolvendo os dias que passaram,

os dias que eram traços de extrema solidão,
apagados agora para virem lembrar:

«Capitão, meu capitão, não nos deixes sós.»

«Que terá sucedido a Djariato?»

De bruços no poema,
avançamos em fila para sul.

«Vamos buscá-la,
deve ter-se escondido;
vamos por eles todos,
estão no mato,
fugiram para o mato
com medo da vingança.»

Mas não ouvi ninguém dizer o quer que fosse.

Ao longe, na tabanca, era o silêncio
que nos amordaçava,
e enceno a redenção nesta catarse.

A realidade é mais dura,
repleta de armadilhas,
de mortos e feridos
que nos fazem partir sem olhar para trás.

A palavra destino endurecia os rostos
e cerrava as maxilas,
falando em monossílabos,
olhos postos no Sul,

onde os quatro cavalos escoiceiam
e lançam very-lights pelos olhos,
tabancas ardem,
e os arrozais da fome são queimados
diante das mulheres a chorar,
as mãos na face negra.
(...)

1 comentário:

Nuno Dempster disse...

Bem escolhido trecho. Pergunto-me agora com estranheza como fui capaz de escrever isso e desse modo. Obrigado pela referência.