domingo, 13 de setembro de 2009

Trasladação dos ossos de Jorge de Sena

De Santa Bárbara chegaram os ossos do poeta
que a pátria exilou. Uns pulhas de um assim chamado Ministério
da Cultura, que não dão à poesia a mínima importância,
ergueram-se a esse gesto como se não se soubesse
quanto os poetas detestam, como tantas e tantas vezes
foi provado e a paródia eleiçoeira, desta vez,
fez promover, não por amor aos versos, certamente,
mas para marcar a determinação da pequenez
em que todos morrem de fome da fartura enfatuada
desta gente. A ocasião, como é comum dizer-se,
faz o ladrão, e a estes não escapam as oportunidades
que o brio predador lhes aconselha, sujando tudo em volta,
dando a tudo o que é grande a represália de sempre,
tal como a todos os poetas já fizeram,
tal como fizeram ao Botto e agora ao Sena fazem, que esperou
mais de trinta anos para que a terra portuguesa de vez o afeiçoasse,
notando-se que como clandestino aqui chegou, agora,
não pela obra dele ou os seus actos, mas pela solerte ratice da canalha
que nunca subirá a púlpitos para pedir desculpa do mal que nos tem feito
e à poesia sempre odiará por lhe saber o fantástico poder que a cilindra.
Brancos os ossos chegam às exéquias da trasladação que por demais tardou
e não há corais de crianças das escolas a entoar-lhe cânticos,
não se promove gente a ler-lhe os livros, não se lhe divulga a obra,
nem os telejornais abrem com a notícia da chegada justa,
a todos convocando não só a que assistam e aprendam, mas que usem
a sua arte de música e de palavras para ampliar a verdade e a liberdade,
o corpo e os sentidos, a dignidade de resistir a tudo,
por mais que o vilipêndio se prolongue e se não salde nunca a dívida.
Não é para admirar. De humilhações, exílios e imbecilidades sofreu Jorge de Sena
durante toda a vida e este misto de preito e de omissão está na linha
do que a pandilha execrável é capaz, tratando-se de dar com uma mão
para tirar com a outra, como é próprio do descaramento e do oportunismo
que, imparável, os há-de condenar ao esquecimento de nunca terem nome,
nem espinha dorsal, nem verticalidade, nem ossos que alguma vez possam
passar por nossos.

Amadeu Baptista
(inédito)

6 comentários:

AnaMar (pseudónimo) disse...

Emociono-me com o regresso de um poeta que sabia, que em Portugal se "morre, sem se ter vivido" e aplaudo esta escrita num respeito que palavra alguma consegue expressar.

Cumprimentos

R.L. disse...

estou arrepiada...

Anónimo disse...

Excelente!
Contra a cambada ousar lutar, sempre.


Pierre Sauvage

Anónimo disse...

Comovo-me.
Obrigada.

Maria Helena

Anónimo disse...

Gostei muito dos restos de um homem que voltou, que aqui não pôde ser homem. Ofereceu muito a este país, inclusivamente este corpo que nem o Salazar pode admirar. Obrigado pelo acto. Não sei a quem agradecer. Portugal não tem nível para conhecer um vulto destes.

petrus monte real disse...

Jorge de Sena, afinal, está vivo. Ele está entre nós. Parece, até, que nunca saiu de entre nós. Verdadeiro milagre. Um mistério que nos é proporcionado pela veia criadora de Amadeu Baptista.
O poeta brinda-nos com uma obra admirável e única.
Obrigado pelo contributo, mais um entre tantos, que nos enriquece e enche a alma de orgulho.
A Cultura precisa.
Parabéns.
Petrus Monte Real.
(pseudónimo)