segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Foi há... 22 anos



As águas das fontes calaram-se e as ribeiras choraram no dia 23 de Fevereiro de 1987, dia em que o Zeca deixou de cantar. Faz hoje 22 anos que morreu o poeta cantor.
Aqui fica a "Balada do Outono" no seu último espectáculo ao vivo (no Coliseu de Lisboa, em 1983), para que o Zeca não seja esquecido.

Balada do Outono
(poema de José Afonso)

Águas passadas do rio
Meu sono vazio
Não vão acordar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar

Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar

Águas do rio correndo
Poentes morrendo
P'ras bandas do mar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar

Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar


BALADA DO OUTONO
Mais propriamente Balada do rio. Dominada ainda pelo velho espírito coimbrão, é o produto de um estado perpétuo de enamoramento ou como tal vivido, uma espécie de revivescência tardia da juventude. O trovador julga-se imprescindível, como um protagonista que a si próprio se interpela para convocar a presença das águas dos ribeiros e dos rios, testemunhas vivas do seu solitário cantar. A imagem do "Basófias" (nome por que é conhecido o Mondego na gíria coimbrã), que incha e desincha quando lhe apetece, deve ter influído na gestação da "partitura". Uma certa disposição fisiológica propensa à melancolia explica o começo das dores sem falar na albumina anunciadora de futuras e promissoras "partenogéneses".
José Afonso


José Afonso: De Coimbra até ao Sul
A voz que guardo dentro de mim não está gravada em nenhum disco: anda a cantar «contos velhinhos de amor, numa noite branca e fria», algures, em Coimbra.
(...)
Eu já andava na militância política, o Zeca era, havia de ser sempre, um libertário em estado quase puro. Ainda se debatia a questão da arte e do empenhamento social e político do artista.
Teoricamente o Zeca era contra, mas as coisas foram mudando e quase sem darmos por isso todos nos fomos comprometendo cada vez mais. Foi primeiro o Decreto 40 900, contra a autonomia das associações e a resposta estudantil, com uma grande manifestação em Coimbra. E depois 1958, o general Delgado e aquele vendaval que varreu o País de lés a lés. Então o Zeca quis pegar em armas. Mas como?
Tivemos que recorrer às que tínhamos à mão: a poesia, a guitarra, o canto. A guitarra do António Portugal tornou-se de repente mais nervosa, experimentando novos ritmos e dissonâncias, e o Zeca aparece a trautear melodias estranhas. Até que saiu a «Balada do Outono». Foi uma iluminação. Assim como alguns poemas aparecem feitos, também aquela balada dava a impressão de ter estado sempre ali e de ter sido colhida no ar num dos momentos de distracção concentrada do Zeca. A canção de Coimbra não voltaria a ser a mesma, a música ligeira portuguesa também não. Aquela balada era nova e ao mesmo tempo muito antiga. Tudo estava nela: a tradição trovadoresca, os cantares de amigo, os romances populares. E também o espírito de um tempo de mudança.
(...)
Trazíamos a «Trova do Vento Que Passa». Cantou-a primeiro o Adriano, a seguir o Zeca, depois ambos. E acabámos em coro, na rua. Era assim, naquele tempo. As trovas e baladas tinham o ritmo da nossa inquietação, de uma luta, da nossa vida. E vieram o «Menino do Bairro Negro», «Os Vampiros», «O Coro dos Caídos». O Sul entraria na música do Zeca com o seu «Pastor de Bensafrim», o seu «Sol de Verão», Catarina, o Alentejo, a cigarra, o silêncio, o grande espaço, a sombra de uma azinheira e o calor da fraternidade. E depois a África, seus ritmos e seus tambores, na fase da maturidade. Vieram os exílios, as longas separações, as pequenas e grandes batalhas, o 25 de Abril, encontros, desencontros, reencontros. E a voz do Zeca sempre, a avisar e animar a malta.
Como os provençais da época de oiro, cuja lição Ezra Pound tão bem captou, José Afonso foi um grande trovador moderno, ligando de novo a poesia e a música. Desse modo renovou uma e outra e contribuiu para mudar a própria vida, como queria Rimbaud.
Foi um homem fraterno, despojado, por vezes até ao exagero. Mas era assim: um revolucionário franciscano, como lhe chamei, irritado por vezes com o seu desprendimento de tudo e de si mesmo. Talvez as sociedades não consigam suportar a força subversiva de um tal despojamento. Por isso o Zeca foi tantas vezes censurado. Por isso continua simultaneamente a encantar e a incomodar. Eu sei que gostariam de transformá-lo em álibi ou torná-lo inofensivo depois de morto. Mas não é possível. A sua voz está tão cheia de ternura que será irremediavelmente subversiva.
Como disse António Portugal: «Um homem cuja voz foi a nossa voz durante muitos anos e que ajudou a tomar possível o nosso encontro colectivo com uma identidade perdida e com um destino que hoje orgulhosamente assumimos.»
Talvez seja isso o que uns tantos não conseguem perdoar-lhe. Mas é com certeza por isso que ele continua a ser a nossa voz.
Manuel Alegre

Era um homem de coragem. Mas também terno, frágil, de uma infinita tristeza. Falava da esperança, lutava pela liberdade e cantava tudo isto, falando em lealdade, em amizade e em amor.
Sempre.
Acreditava na solidariedade, no sonho e na poesia, como armas de paz. Porque Zeca Afonso era sobretudo isso: um homem de paz, que se insurgia contra a violência, contra a prepotência, contra as desigualdades e as hipocrisias, através daquilo que compunha, que criava.
Encarou o fascismo com uma firmeza e uma rebeldia muito própria, muito pessoal: com aquele seu olhar distraído e espantado de criança; com aquela sua tranquilidade silenciosa, com aquela sua timidez bonita, que todos testemunhámos.
Zeca Afonso deixou atrás de si uma obra importante na música portuguesa, mas para mim ele foi, sobretudo, um amigo especial, diferente, que recordo com saudade.
Um homem de palavra e das palavras livres.
Maria Teresa Horta

(Textos do site da Associação José Afonso)

1 comentário:

Alvaro disse...

Obrigado Inês por este post ao grande Zeca Afonso.
:)