sexta-feira, 13 de julho de 2007

Homenagem

Praia da Batata, Lagos, 20 horas, quinta-feira, 12 de Julho. Tinha acabado de fazer alguns cortes superficiais e vários hematomas na coxa esquerda, depois de atravessar uma pequena gruta e saltar de metro e meio para cima de um rochedo cheio de limos.
Não me senti o homem mais infeliz do mundo. Senti-me apenas estúpido, consciente da pequena gravidade dos cortes. Era apenas um incómodo. Estava um final de tarde maravilhoso e preparava-me para ler PÚBLICO, JOGO, BOLA e RECORD num ambiente de paz e silêncio.

Coloquei o meu saco Adidas com perto de 25 anos (oferecido pelo meu amigo Kiko, após umas férias em Espanha) em local visível (não fosse um amigo do alheio gostar de relíquias) e fui para a água. A água em Lagos é muito fria, mas neste caso era óptimo. O frio seria o cicatrizante perfeito para ajudar a estancar o sangue, que não corria abundante, mas escorria de mansinho, insinuante. O sal e o iodo são também óptimos para situações destas. E o meu
escasso sangue não ia contaminar as águas, pois ninguém se encontrava por perto numa área de 50 metros. Nem chamar tubarões.

Fiquei por ali 15 minutos, de costas para a água, sempre com o meu saco à vista, a 60 metros, com as mãos por cima da testa, a fazer de pala, dado o contra-luz.

Saí da água, avaliei o grau de cicatrização dos cinco ou seis arranhões, espantei-me com a velocidade com que os hematomas se atenuaram (as nódoas negras tinham desaparecido a 80%, apesar do ligeiro inchaço) e fui para cima do pontão, ler os jornais, em cima da toalha.

Ponho o chapéu, ajusto os óculos escuros, procuro a melhor posição perante o sol e agarro no JOGO. Sinto-me invadir por aquela sensação de agarrar num jornal em que me sinto em casa, apesar de já não colaborar com a publicação. Mas é lá que tenho muitos amigos, como em tantos outros jornais.

Começo sempre pela última página. Primeiro quero ler as modalidades. E foi aí que sofri o corte mais profundo da tarde:

FALECEU VASCO HENRIQUES

Faleceu ontem (quarta-feira, 11), numa unidade hospitalar do Porto, o jornalista Vasco Henriques. Tinha 45 anos, pouco menos de metade deles passados na Redacção de O JOGO, até a doença prolongada o ter afastado do trabalho e da nossa companhia diária. Deixa esposa, filha e uma imensidão de amigos fiéis que a profissão lhe permitiu coleccionar, de uma forma muito própria e sempre prolífica. Só hoje (quinta-feira, 12) serão feitos os preparativos para o funeral, pelo que ainda não nos é possível dar essa informação. O JOGO apresenta à família sentidas condolências.


Fiquei a olhar para aquilo e duas lágrimas escorreram-me dos olhos. Por uma pessoa que nunca tinha visto pessoalmente, mas com quem falara muitas vezes ao telefone, por causa de serviços enviados de Lisboa para a Redacção do Porto. Claro que a urgência dos fechos nos obrigava a diálogos breves, na maior parte do tempo. Mas houve ocasiões em que estreitámos laços através de uma troca de pequenos pormenores pessoais. O Vasco era uma voz amiga que eu não ouvia há anos.

Telefonei ao Barbedo Magalhães (editor de Modalidades de O JOGO) e perguntei-lhe se a família não gostaria de ver publicado um poema meu em homenagem ao Vasco. O Barbedo disse que sim. Telefonei à Inês e perguntei-lhe se podia, uma vez mais, abusar da generosidade dela, pois não conheço espaço mais digno para homenagear os que partem do que este blogue dedicado à poesia. E as lágrimas estão já a escorrer-me outra vez pelos olhos.

Meia-hora depois de ter lido a notícia fúnebre tinha escrito este poema. Saí da praia decidido a beber duas ou três Guiness à memória do Vasco, pois Guiness era a cerveja favorita de outro querido amigo que desapareceu, o Fernando Alves Serra, da primeira Comunidade de Leitores da Culturgest.

Acabei a pagar o jantar a dois músicos de jazz franceses que tocavam Django em dueto de violas na principal rua de Lagos. E a morte do Vasco ficou mais suave.
O poema, com um grande abraço à família e a todos os camaradas de O JOGO é este:


UM GOLPE NA ALMA

Sabes, Vasco, nunca te vi o rosto
só te ouvi a voz
nesse Porto-Lisboa telefónico qu'era nosso

Sabes, Vasco, estou a sangrar
fiz mesmo agora um corte numa perna
e estou a mentir-te, Vasco

Fiz dois cortes, um na perna
nos rochedos
da Praia da Batata, em Lagos

E outro, muito mais profundo
na alma, que o sal e o iodo
não podem cicatrizar

Sabes, Vasco, eu não te conheci
mas ouvir a tua voz
não será conhecer-te um bocadinho?

Estou de férias, Vasco
com gritos de gaivotas
que não me deixam dormir

É tão injusto sentir-me assim
com raiva das gaivotas
quando tu nunca mais as ouvirás

Quando desceres à terra, Vasco
e nem sei se o teu corpo
viajará pelo fogo até onde não sei

Leva um pouco deste sol algarvio
desta brisa e destas lágrimas sinceras
de um homem que nem sequer te conheceu

Luís Graça, 12/7/2007, 20h29m

PS: À noite, no meu quarto de hotel, peguei finalmente nos jornais. Eram quase três da madrugada. Comecei a folhear o Record. E a página 39 era totalmente dedicada ao Professor Fernando Ferreira, fundador do jornal.
Morreu o Professor Fernando Ferreira.
"É" — disse-me ele; "destes já não se fabricam" — respondeu o Professor a Rui Cartaxana, quando o ex-director do Record lhe disse que o achava em perfeira forma física, já nos seus oitenta e picos.
Fernando Ferreira nasceu a 21/8/1918 e faleceu a 10/7/2007.

Do professor Fernando Ferreira conhecia a voz, conheci o olhar, conheci as fotos do atleta esbelto, conheci a voz e o carácter romântico e "duro de roer", no bom sentido. E estreitámos laços em meados dos anos 80, nos debates de um ciclo de cinema que decorreu no S. Luiz, denominado "Cinema e Desporto".

Pois é. Estamos de férias. Vamos à praia, lemos o JOGO e morre um camarada. Jantamos com dois músicos de jazz, adocicamos a alma, chegamos ao hotel, comemos qualquer coisa, vimos para a varanda ouvir as gaivotas (impossível não as ouvir), sentir a brisa. Deitamo-nos na cama do quarto do hotel, ganhamos coragem para folhear os jornais e sabemos da partida de um amigo.

À família e amigos do professor, os meus sentidos pêsames. Hoje à noite, não sei se vou com familiares ver "As obras completas de Shakespeare em 97 minutos". Se me apanharem a rir, Fernando e Vasco, não fiquem zangados. Estou só a tentar resistir até saber da próxima morte de um amigo.

Já não tenho forças para ficar escondido num cantinho a chorar-vos. Cada morte é como um estágio para um próximo desaparecimento. E preciso destes intervalos para ganhar balanço.

Agora parei de chorar.

Luís Graça

2 comentários:

Anónimo disse...

O Barbedo Magalhães (em O JOGO) e o Vítor Queiróis (na rubrica HOJE JOGO EU, de A BOLA) fizeram belos e sentidos textos de homenagem ao Vasco.

E puseram-me a chorar outra vez.
Ando a chorar pelas praias.
Ontem foi com o texto do Barbedo, na Meia-Praia. No dia anterior tinha sido na Praia da Batata, como disse.

Resta esclarecer que o Vítor Queirós foi durante muitos anos jornalista de O JOGO, daí a sua proximidade com o Vasco.

Mais dois recortes para o meu "dossier" de pessoas que já partiram.

Anónimo disse...

Ola' :)
so' agora soube da existencia deste blog, com este textinho.
sou filha do Vasco Henriques e não podia deixar de agradecer as palavras que dedicou ao meu Pai ! muito muito obrigada.
estou completamente sem palavras !

cumprimentos *