terça-feira, 23 de outubro de 2007

Na estante de culto



António Ramos Rosa
Antologia Poética
Selecção, Prefácio e Bibliografia de Ana Paula Coutinho Mendes
Publicações D. Quixote, 2001

Falar de Ramos Rosa é falar de um dos maiores poetas portugueses contemporâneos e o que mais tem publicado desde os finais dos anos 50. Não é por acaso que a maior parte dos livros de Ramos Rosa esgota pouco tempo depois de terem sido editados. Ele é o nosso círculo aberto, o nosso grito claro, a nossa figura solar. Com ele aprendemos a amar as palavras de vogais abertas (como as de Sophia) e a encontrar uma nova matéria do real num poema. Ramos Rosa alterou a nossa poesia desde os anos 70. Amou a poesia como a uma mulher. Pintou-a em palavras e reinventou-a, por entre clarões e sombras, expandindo-a a todo o espaço e a toda a matéria, através de um erotismo mediado pelo corpo da mulher, pelo corpo da terra, pelo corpo da própria palavra. Tornou-se desde cedo e continua sendo o nosso Poeta em Construção.

Nesta antologia poética das Edições D. Quixote, editada em 2001, Ana Paula Coutinho Mendes seleccionou com mestria cerca de duas centenas de poemas de Ramos Rosa, permitindo-nos uma visão alargada e cronológica da sua obra, desde o subjectivismo inicial ao cultivo puramente objectivo, aos elementos neo-realistas, surrealistas, neo-clássicos, neo-barrocos...


António Víctor Ramos Rosa nasceu em Faro, em 1924. Nos anos 50, altura em que era apenas conhecido como crítico literário e ensaísta, foi fundador e/ou co-director das revistas literárias "Árvore", "Cassiopeia" e "Cadernos do Meio Dia", tendo também colaborado em diversas publicações francesas, espanholas e brasileiras. É com a publicação do livro "Grito Claro" que se torna conhecido como poeta.
Organizou e prefaciou várias antologias e traduziu também algumas obras.
A sua poesia figura em inúmeras antologias estrangeiras, nomeadamente na Europa e América Latina.
A sua obra tem sido reconhecida publicamente, e a comprová-lo está a crescente acumulação de prémios relacionados com a sua actividade e os recitais que são realizados com os poemas do autor. O seu nome também já foi apontado como candidato ao Prémio Nobel da Literatura.
Prémios ao autor:
Prémio da Bienal de Poesia de Liége, 1991
Prémio Jean Malrieu para o melhor livro de poesia traduzido em França, 1992
Prémios à sua obra:
Prémio Nacional de Poesia, da Secretaria de Estado de Informação e Turismo (recusado pelo autor), 1971 (Nos seus olhos de silêncio)
Prémio Literário da Casa da Imprensa (Prémio Literário), 1972 (A pedra nua)
Prémio da Fundação de Hautevilliers para o Diálogo de Culturas (Prémio de Tradução), 1976 (Algumas das Palavras: antologia de poesia de Paul Éluard)
Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia, 1980 (O incêndio dos aspectos)
Prémio Nicola de Poesia, 1986 (Volante verde)
Prémio Jacinto do Prado Coelho, do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, 1987 (Incisões oblíquas : estudos sobre poesia portuguesa contemporânea)
Prémio Fernando Pessoa, 1988 (Viagem através duma nebulosa)
Grande Prémio de Poesia APE/CTT, 1989 (Acordes)
Prémio Municipal Eça de Queiroz, da Câmara Municipal de Lisboa (Prémio de Poesia), 1992 (As armas imprecisas)
Grande Prémio Sophia de Mello Breyner Andresen (Prémio de Poesia), São João da Madeira, 2005 (O poeta na rua. Antologia portátil)
Grande Prémio de Poesia APE/CTT, 2005 (Génese seguido de Constelações)
Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia, Lisboa, 2005 (Génese seguido de Constelações)
Prémio de Poesia Luís Miguel Nava, 2006 (Génese seguido de Constelações)



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração


Na voz de Luís Gaspar:


A palavra

A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.


Na voz de Luís Gaspar:





É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso




Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

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